segunda-feira, 2 de junho de 2014

John Locke (1632-1704)




A Circunstância



Diz-se que nunca se conhece bem um homem se ele não for visto pelos olhos de uma mulher. Maria chamou-me a atenção para Locke, por curiosidade e por necessidade.
Quem era este homem cuja vida atravessou uma das mais conturbadas e definitivas voltas da história de Inglaterra?  Hoje parece claro que John Locke é um dos filósofos cuja influência é mais subestimada, sobretudo pelas características do seu pensamento filosófico e pela natureza do  seu pensamento político. No entanto, Locke foi um pioneiro. O seu pensamento influenciou muitos pensadores brilhantes e, do ponto de vista prático, hoje vivemos numa sociedade que é um eco do seu pensamento político. E o seu pensamento, profundamente anti-católico, recebe uma paradoxal admiração de muitos homens que se dizem católicos. Sobretudo de economistas, os profetas do nosso tempo, os nossos encantadores de serpentes.

Uma década de república despótica, governada pela tirania, pelo preconceito e pelo sangue, de Oliver Cromwell (oficialmente no poder de 1653 a 1658) e dos puritanos. Os vinte e cinco anos de reinado de Carlos II com a portuguesa Catarina de Bragança, asseguraram a restauração de Portugal como nação e do império como espírito. Mas o reinado de Carlos II foi marcado pelo desgosto da grande peste de 1665, pelo grande fogo de Londres de 1666, pelas múltiplas amantes do rei, pela intriga constante na corte e pela esterilidade da rainha.

A sucessão para o irmão de Carlos, Jaime II, duraria 3 anos. Na base da deposição de Jaime II esteve o seu catolicismo, nomeadamente o decreto de liberdade religiosa de 1687, Declaração pela Liberdade de Consciência: “suponham que todos os homens negros fossem aprisionados; não seria razoável. Temos tantas razões para punir os homens por serem de diferentes compleições como por serem de diferentes opiniões.” 

Claro que a sua recusa em assinar o Acto de Prova em 1673, em que todo o funcionário público, civil ou militar, teria que negar o núcleo do credo católico, incluindo o dogma da transubstanciação, o tinha tornado publicamente conhecido como católico. O nascimento do seu filho em 1688, que asseguraria à Inglaterra uma dinastia católica, precipitou os acontecimentos da Revolução Gloriosa, que consistiu na sua deposição e exílio e a entrega do trono a seu genro, o calvinista Guilherme de Orange, Estatuder, Stadthouder ou Regente da Holanda, que beneficiou da deserção do principal oficial do exército de Jaime II, o protestante John Churchill, 1º duque de Malborough, antepassado directo de Winston, o Churchill que a História tornaria mais conhecido.



Estes acontecimentos assinalariam a passagem da coroa de Inglaterra da casa Stuart para a casa de Hanover. A heráldica actual é a de Guilherme de Orange: “Dieu et Mon Droit”. A burguesia aliou-se à nobreza nesta traição ao rei Jaime II, libertando-se da tutela real e do limite à acumulação de riqueza, uma vez que passava a ser o Parlamento, controlado pela nobreza e pela burguesia, a definir a política de impostos. Por outro lado, o banco central deixaria a tutela real e passaria a ser controlado por uma estrutura accionista privada, que tinha o Estado inglês como o seu principal cliente. O esforço de guerra de Guilherme foi mesmo suportado por esta estrutura privada cujos principais activos se encontravam na altura na Companhia das Índias Ocidentais. Guilherme de Orange, o taciturno, nunca viria a ser um rei popular, porque a sua distância e frieza, os impostos e as constantes mobilizações para a guerra, conduziriam o povo à miséria. As alegações quanto às suas relações homossexuais com Hans Willem Bentinck e Arnold Joost van Keppel, 20 anos mais novo do que ele, dividem os seus adeptos e detractores.


Claro que a França, teoricamente católica e aliada de Jaime II, não era propriamente um exemplo de conduta moral. Em França reinava um monarca megalómano e egocêntrico que dizia “O Estado sou eu!” ou que se denominava de “O Rei-sol”. Como afirma Chesterton em Twelve Types, desde então nunca mais ninguém insultou assim o sol. Com este tipo de aliado e com este tipo de católico, não é de admirar que o parlamentarismo, o protestantismo e a ascensão da burguesia mercantil e financeira encontrassem acolhimento na mente do homem comum inglês.

O partido Whig, um feroz adversário da Igreja Católica, esteve na base do principal apoio a Guilherme de Orange (Guilherme III) e encontrava nas ideias de John Locke a sua base doutrinária. Locke era, ele próprio, um whig. John Churchill, o comandante do exército que traiu o rei Jaime II em favor do seu genro holandês, era whig. O partido whig representava as várias confissões protestantes que, por sua vez, eram dissidentes da Igreja Anglicana. O cerne da sua filosofia política, como veremos com Locke, era a suspeita sobre o poder real e a sua preferência pelo poder do parlamento, onde um pequeno número de pessoas oriundas das classes burguesas mais abastadas, controlavam facilmente a maioria dos votos. 

Essa foi a razão por que Guilherme III manteve sempre os Tories (conservadores) como partido parlamentar de poder, apesar da simpatia destes pela Igreja Anglicana ou pela Igreja Católica. É que os Tories eram os principais representantes da velha mentalidade inglesa de que “um inglês segue sempre o seu rei”. Samuel Johnson, o Dr. Johnson que tanto influenciaria Chesterton, um conservador, diria que “O primeiro dos whigs foi o próprio diabo”. Ele definiria um conservador como “aquele que defende a antiga constituição da Inglaterra e o predomínio da Igreja Anglicana, em oposição a um whig”. 

Liberais na política, nos costumes e na economia, eram curiosamente proteccionistas, contrariamente aos conservadores que eram defensores do mercado aberto. Com a subida ao trono de George III, a supremacia whig de mais de meio século, começou a decrescer a partir de 1760, quando o rei pretendeu diminuir o poder dos magnatas whigs. Mas o seu pensamento estendeu-se e inflamou-se nas colónias, onde incentivaram o sentimento republicano, tendo sido a base dos founding fathers na América que se auto-denominavam de “whigs”.

Em 1829 com o Catholic Relief Act, foi concedida aos católicos a liberdade de culto embora com restrições acentuadas no desempenho de funções públicas. Em 1833, perdido o grande mercado da América, o Slavery Abolition Act que terminou com a escravatura. Os whigs em Inglaterra evoluíram para o partido liberal, em 1859 com Lord Palmerston, mas com William Ewart Gladstone, uma personalidade querida de Chesterton, o predomínio whig praticamente desapareceu no partido liberal, tendo-se transferido para o partido conservador em 1912. Joseph Chamberlain, ministro das forças armadas (1923), ministro da saúde (1923, 1924–29, 1931), e ministro das finanças (1923–24, 1931–37), foi talvez o último verdadeiro líder whig, no partido conservador. São bem conhecidas as críticas de Chesterton a Chamberlain.








O Homem (1632-1704)


Filho de pais puritanos, John Locke teve uma educação privilegiada, graças à proximidade do seu pai, advogado, militar e político, das mais altas personalidades de Inglaterra. Em 1652 foi estudar para o colégio Christ Church em Oxford e em 1674 adquiriu um bacharelato em medicina, nunca chegando de facto a terminar a licenciatura. Já era membro da Royal Society desde 1668. Foi em Oxford que desenvolveu um relacionamento íntimo com Lord Ashley, conde de Shaftsbury, que seria um dos fundadores do partido Whig, ministro das finanças de 1661 a 1672 e que chegaria a primeiro-ministro em 1672. Ashley nomearia Locke seu secretário pessoal e tornar-se-ia seu mentor.


A visão de Ashley quanto ao papel do Estado face ao indivíduo marcariam o Dois Tratados de Governo, de Locke, que exerceriam marcada influência nos enciclopedistas franceses e nos founding fathers americanos. Em 1683, o conde de Shaftesbury e Locke decidem exilar-se, primeiro em França e depois na Holanda, na sequência de um atentado à vida do rei Carlos II e de seu irmão Jaime, que viria a ser o rei Jaime II. Em França toma contacto com a obra de Descartes e na Holanda escreve Um Ensaio Sobre o Entendimento Humano, o seu livro mais importante de análise ao modo como se obtém o conhecimento, que seria publicado em 1689. Em 1688, retorna a Inglaterra na sequência da Revolução Gloriosa, acompanhando a mulher de Guilherme de Orange, que seria coroado com Guilherme III. Publicaria as restantes obras, Uma Carta sobre a Tolerância, A Razoabilidade da Cristandade, Tratados sobre Governação e Alguns Conceitos Sobre Educação, no curto espaço de cinco anos (1689-1693). 

A partir daí a sua vida seria sempre na esfera política, ocupando vários cargos públicos, como membro do partido whig. As suas ideias sobre o contrato social influenciariam Rousseau; Voltaire chamar-lhe-ia “le sage Locke” e James Madison e Thomas Jefferson seriam por ele consideravelmente influenciados. Jefferson chamar-lhe-ia “um dos homens mais sábios que já existiram”, pelas suas ideias sobre liberdade, contrato social e separação de Igreja e Estado. Uma passagem do seu Segundo Tratado é reproduzido literalmente na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. 
Nunca casou nem teve filhos.
Locke ocupou-se particularmente por quatro grandes assuntos:
O gnosiológico, o ético-político (incluindo a política económica), o pedagógico e o religioso (incluindo a consciência de si e a percepção da existência de Deus).
Estas áreas de trabalho de Locke serão os temas dos nossos próprios textos e revelarão um paradoxo: pode-se estar em perfeito desacordo ou concordar inteiramente com o que diz e, só por isso, Locke é um sujeito de estudo tão fascinante. 




António Campos

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