domingo, 8 de junho de 2014

O Mundo Maravilhoso de…


Beatrix Potter (1866-1943). Conheci-a a partir do início dos anos 80. Encontrava-a no Natal e
no “esquisito” dia de São Valentim de que nunca ouvira falar. Por vezes chegava com uns discos em vinil dos Joy Division, dos Jam ou, mais tarde, de Tracy Chapman. Os seus coelhinhos, como Pedro, e as suas linhas redondas e graciosas, as suas cores suaves (que lembram Bouguereau), cativaram-me o coração e habituaram-me a admirar uma certa Inglaterra. A personificação, a metáfora e a alegoria, iniciaram o seu caminho no meu jovem espírito. A tragédia da sua vida, a sua coragem, os seus recomeços e a sua capacidade de transmitir uma mensagem, por meio de imagens e de palavras, aprisionaram-me o coração. Para Beatrix as palavras tinham sempre um duplo sentido: não o sentido da ambiguidade, hipocrisia muito comum nos escritores modernos, mas o duplo sentido do valor estético que eleva o espírito humano à devoção de uma beleza sublime, irmanado no sentido das próprias palavras escritas, que deslumbram, enlevam e nos guiam do poço da melancolia, à luz de uma esperança incandescente.

Também a sua vida se fez desse duplo sentido, em que as palavras e a acção, como que se completavam. Aprende-se muito ao ler a biografia de uma pessoa famosa. Aprende-se mais do que lendo as suas obras. Foi pela vida de Wilde, de Kant, de Marx, de Sartre, de van Gogh, de de Beauvoir, de Nietzsche, de Kafka, de Freud, de Locke, de Virginia Woolf, de Foucault, …, que aprendi a conhecê-los melhor. Todos grandes artistas, alguns grandes pensadores, todos fundamentalmente desequilibrados. Chesterton dizia em Doze Tipos: “Um artista ensina mais pelo seu contexto e características pessoais, o seu ambiente, os seus hábitos, idioma e técnica –  parte do seu trabalho do qual será provavelmente inconsciente – do que pela sua moral complexa e diletante, que ele  convictamente supõe reunir o conjunto das suas opiniões.”

Foi já num contexto familiar que mais de duas décadas depois reencontrei Beatrix, nesse filme mágico interpretado pela muito muito querida Renée Zellweger, a figura da bondade em Hollywood. O enlevo voltou. Afinal sempre existem luzes na escuridão desta idade desesperada e decadente.



Chesterton (1874-1936). Existem muitos paralelos entre a sua vida e a de Beatrix, sobretudo no que a vida de ambos teve de são e equilibrado e de exemplo para todos. Mas o que interessa sublinhar neste pequeno apontamento é a semelhança na expressão do pensamento, quer por ilustração, quer por palavras, quer por palavras ilustradas. Obras como The Wild Knight and Other Poems ou Greybeards at Play são exemplos ilustrativos da qualidade de Chesterton como desenhista ou ilustrador. Mas é em obras emparelhadas, como O Homem Que Era Quinta-feira e The Flying Inn (A Estalagem Voadora ou A Taberna Errante) ou The Wild Knight e Tremendas Trivialidades que percebemos melhor o que significa em Chesterton o conceito de palavras ilustradas.

O que se observa é o mesmo estilo literário de outros dois grandes malabaristas com as palavras: Nietzsche e Kafka. O mesmo estilo metafórico, a parábola, o conto, o aforismo, a percepção rápida ou iluminação, o ataque, o desafio; tudo resumido numa retórica dramática sublime, sempre baseada em grande conhecimento, mas nada parecido com uma descrição exaustiva de um especialista, de um professor. A natureza da descrição do pesadelo propriamente dito em Chesterton, para além da qualidade de expressão ou ilustração, parece-se ainda mais com Kafka.
A grande diferença é que Chesterton tem sentido de humor, um humor partilhado, alegre e cristalino: um humor que desperta do pesadelo e cega por uma grande luz. Chesterton sabe que é um profeta de uma verdade de Outro, de uma verdade comum. Kafka afunda-se no seu pesadelo, o seu humor é negro, desesperado. Joseph K. não acorda do pesadelo, encontra-se cego pela escuridão. Os heróis de Chesterton são reis; os de Kafka são vermes ou eternos prisioneiros de uma vida incompreensível. Estes profetas modernos, como Nietzsche ou Kafka, não anunciam uma verdade partilhada, anunciam a sua verdade pessoal e gritam para que os sigamos. Quer a história dos seus heróis na escrita quer as suas vidas pessoais se afundam, poço após poço, nas fundas trevas do desespero.



É surpreendente como a análise a Kant e a Locke têm uma conexão directa com o pensamento de Chesterton. Ao analisar O Homem Que Era Quinta-feira, percebe-se a associação com Locke - o impressionismo, as sensações - e com Oscar Wilde - o esteticismo, em certa medida o existencialismo, a religião do carpe diem. Ao analisar A Estalagem Voadora compreende-se a relação com Kant: o racionalismo moralista, o homem do raciocínio lógico circular, o solipsista. Wilde acabou consumido pelo remorso e pela doença; Kant pela demência e o isolamento. 

Nestes homens não encontramos a alegria de Beatrix ou de Chesterton. A sua lógica só nos pode conduzir ao desespero, à impessoalidade, ao distanciamento, à frieza. Um perde a visão comum e vive pelas sensações, como se a moralidade consistisse em experimentar sensações e quebrar limites; o outro define como obter uma moral formal e a verdade como como tendo natureza subjectiva. Um vive para experiências sensuais sem limite moral; o outro impõe uma moralidade formal subjectiva, desprovida de emoções.



Nas noites de desconforto e de dúvida, nas noites de insónia, de incerteza, subo ao sótão. O meu sótão é habitado. Nele se encontram amigos e inimigos, num suceder de estantes e de livros, de gavetas e de memórias. Sento-me entre os silvos do vento que saem dos braços nus de castanheiros e faias, conforto-me com o ciciar da chuva nas folhas das camélias. No verão embala-me o calor da brisa que rumoreja das faias que envolvem a casa. Conheço-as a todas pelo nome, plantei-as, senti-as crescer. Quando me encontro só e na dúvida, procuro o refúgio nas águas cristalinas, uma voz próxima e amiga, um afago, uma porta que se abre, um olhar, um sorriso complacente e doce, um crepitar de fogueira numa lareira de infância. E, com olhos inchados de insónia, encontro a gaveta onde vivem Beatrix e Gilbert Keith. De manhã, recordo um abrir de porta, uma sala de luz que me cega, um aconchego quente e as vozes de crianças. E na memória, sonho ou realidade, quedam impressos em inglês antigo os caracteres da entrada: My dearest, dearest friends.



António Campos

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