sábado, 18 de outubro de 2014

HEGEL PARA PRINCIPIANTES - LÓGICA E DIALÉTICA



"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades."



Dialética ou a arte do diálogo, significa colocar à prova uma tese, por meio da argumentação, por forma a apurar claramente os conceitos em discussão.

Para Aristóteles, dialética era a lógica do provável, aquilo que parece aceitável por todos, ou pela maioria, e que no entanto não pode ser demonstrado.

Sócrates viveu no séc. IV a.C., uma época de relativismo moral e de decadência da polis grega. Dominavam os sofistas, que pretendiam ser conhecedores do saber universal, comentando todo o tipo de assuntos (como fazem os actuais comentadores de televisão, o oráculo moderno). Sócrates afirmava que nenhum homem poderia saber tudo, só os deuses, portanto um homem deveria apenas pronunciar-se sobre assuntos que de facto conhecesse. Para o apuramento conceptual utilizou a sua dialética que consistia na ironia e na maiêutica. A ironia consistia em colocar questões sobre a formulação de um conceito pelo interlocutor, expondo as contradições, a fraqueza ou a imprecisão do conceito. Ao constatar que o conhecimento que tinha do conceito não era adequado, o interlocutor re-elaborava a definição, parindo um novo juízo sobre o conceito (maiêutica). O objectivo de Sócrates não era  impor um ponto de vista mas sim  fazer ver.


Para Heráclito, a realidade é contraditória, em permanente transformação e os seres não têm estabilidade alguma: “Um homem não se banha duas vezes na mesma água de um rio.” Nem o mesmo homem nem a mesma água.

Hegel retira de Heráclito este conceito da instabilidade do ser - como o ser é multiforme, i.e., homem, animal, planta, pedra, etc., então ele nada é em concreto – e o conceito de movimento circular e permanente mudança (o homem de hoje já não é o homem de ontem). Retira de Platão o conceito de que apenas as ideias são reais, enquanto que as coisas concretas perecíveis, abandonadas a uma corrente constante de mudança, são irreais, meras aparências. Retira de Kant, como afirma Popper na Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, o conceito de a priori, as ideias existentes na mente como conhecimento absoluto, racional. Desta combinação ideia-real / ideia-razão resultou por triangulação (e Hegel adorava triângulos), o conceito central de real-racional.

Por outras palavras, tudo o que parece racional para aqueles que possuem a razão “na moda” é a pura realidade. O auto-convencimento é equalizado à verdade, a opinião ao conhecimento verdadeiro. Desde que se esteja actualizado com as ideias correntes, i.e., na moda, basta acreditar nessa doutrina dominante e ela torna-se, por definição, a própria verdade. Hegel afirma que o subjectivo, i.e., a opinião ou crença, e o objectivo, i.e., a verdade, se tornam uma identidade e por esta união de opostos acontece o conhecimento científico: “A ideia é a união do subjectivo com o objectivo. A ciência pressupõe que a separação entre si e a verdade se encontra cancelada.”
(A ideologia chegou ao altar da razão…).





Lógica, logos, estuda o raciocínio válido. Se o objecto é forma e conteúdo, então a lógica (aristotélica) estuda a forma do raciocínio verdadeiro independentemente do seu conteúdo. Assume a forma de silogismo: Se a premissa "tudo o que é a é b" for verdadeira, então se x é a, x é b, independentemente do que for a, b ou x. Na lógica o conteúdo não possui qualquer interesse. Tudo depende da premissa. Devido a essa separação entre forma e conteúdo, a lógica não nos diz nada sobre o mundo real. Contém mais dois princípios fundamentais: a lei da não contradição e a lei do terceiro excluído. A primeira afirma que algo não pode ser simultaneamente verdadeiro e falso; a segunda afirma que uma afirmação não pode ser nem verdadeira nem falsa; ou é uma coisa ou outra.


O objectivo da lógica para Hegel é a verdade. E o que é a verdade? Hegel afirmava que não existe realidade fora do pensamento e que existe identidade entre realidade objectiva e pensamento, i.e., são uma mesma coisa. Hegel utiliza esta ideia para negar essa distinção entre forma e conteúdo: se a lógica estuda o pensamento, ela estuda a realidade, “se ainda se quiser empregar a palavra matéria, o conteúdo da lógica é a verdadeira matéria. É a verdade, tal como ela é. Este conteúdo mostra Deus tal como ele é em sua essência eterna, antes da criação da natureza e de uma mente finita".

Este argumento tem por objectivo atacar a ideia de que a verdade ou a realidade se encontra no mundo concreto das pessoas e na natureza externa. A verdade encontra-se no pensamento racional. A lógica é, portanto, o estudo dessa realidade última na sua forma pura, abstraída de formas particulares. Como a mente molda o mundo, o estudo da mente informa sobre o modo como o mundo foi criado, i.e., torna completamente cognoscível a essência eterna de Deus antes da criação.

Trata-se de uma lógica com conteúdo “transcendental” mas não no sentido kantiano. Para Kant, a lógica transcendental (as categorias lógicas) era característica dos intelectos finitos discursivos, deixando a possibilidade da existência de um tipo de lógica acessível ao conhecimento intuitivo que seria atributo exclusivo de um intelecto infinito criador (Deus). Hegel oscila entre a noção de um intelecto humano como reflexo de um intelecto divino – uma correia de transmissão - ou a da inexistência pura e simples de um tipo de intelecto diferente do humano. Ou o intelecto humano exprime a vontade do intelecto divino, sem autodeterminação (deísmo), ou não existe nenhum intelecto divino (ateísmo).




Uma Gramática do Pensamento



Na lógica de Hegel o pensamento encontra-se dobrado sobre si próprio, ensimesmado. Distancia-se do mundo externo, não o tenta compreender, pois considera-o um produto de si próprio. O pensamento versa apenas sobre categorias lógicas nas quais se vai encaixar o mundo e toda a realidade, porque Hegel pensava que se tratasse de compreender o mundo como uma realidade parcial, externa, a razão o enganaria. Hegel chama a este estado “dedutivo” da lógica, algo que salta à vista, algo como a gramática, uma espécie de código evidente.

Não se trata de uma lógica formal ou geral mas sim daquilo a que Kant chamou a lógica transcendental – a dedução das categorias – na Crítica da Razão Pura. O próprio Kant acreditava ser evidente ao julgamento empírico de qualquer um dos intelectos discursivos, i.e., acessíveis, evidentes e aceitáveis por todos os homens. Como se trata de uma lógica de conteúdos é uma ontologia: o tudo e o nada, o ser e o tornar-se, a essência e a ideia, o uno e o múltiplo, a substância e o acidente, a forma e o conteúdo, o sujeito e o objecto, a mudança e a perenidade, a realidade e a potencialidade, a essência e a aparência, a matéria e o espírito.




O Que Significa Então Conhecer?
A Ideia de Progresso Circular Rumo à Perfeição ou ao Absoluto



O objectivo da Lógica é claro: demonstrar a necessidade do idealismo absoluto. A lógica lida com conceitos enquanto que a Fenomenologia lida com a consciência: "somente a ideia absoluta é ser, é vida imperecível, a verdade que se conhece a si mesma, a verdade inteira". O que é a ideia absoluta? Tudo! Todos os particulares fazem parte deste geral. A sua auto-compreensão é o Estado na Filosofia do Direito; é a consciência na Fenomenologia (o panteísmo, nós-a-natureza-deus, para evitar a alma alienada, a consciência infeliz), é a ideia (conceito) na Ciência da Lógica.

A lógica hegeliana não tem como objecto as formas de pensamento (conceito, juízo, silogismo) mas a estrutura real imanente às próprias coisas, i.e., o que elas são e o que serão. Hegel chama a isto "o conceito das coisas", "a alma dialética" ou o seu "interno logos". A lógica hegeliana é não somente uma ontologia mas a mais ampla doutrina de categorias elaborada após Aristóteles (uma coisa e o que ela vai ser são a mesma coisa). O pensamento e a verdadeira natureza das coisas seriam, assim, uma mesma realidade. Só a totalidade é real. Tudo o que é parcial não é completamente verdadeiro. Todos os momentos são constitutivos, não são meras etapas ou fases: “Unidade na totalidade”.

Para se entender este sistema tem que se levar em conta que, para Hegel, a realidade é espírito infinito e o espírito “move-se” pela dialética. O espírito desce sempre ao concreto para regressar ao infinito numa espiral triádica: o ser em-si, o ser-outro ou fora-de-si, o retorno a si ou o ser-em-si-e-por-si. Este movimento do espírito abre “lugar” a três manifestações na realidade: A Ideia em si ou logos ou racionalidade pura que é objecto da Lógica; a Natureza que é a ideia fora de si, alienada, que é objecto da Filosofia da Natureza; o Espírito em geral que é esta ideia alienada que retorna a si e se torna em-si e por-si, que é objecto da Fenomenologia ou Filosofia do Espírito. Tudo é o desenvolvimento da ideia por meio da sua negação e superação, pelo uso exclusivo da razão. A realidade é o desenvolver da ideia: “Tudo o que é racional é real e tudo o que é real é racional”.




Tomado em si mesmo, o finito tem existência puramente "ideal" ou abstrata, no sentido de que não existe por si só, contra o infinito ou fora dele - e isso, diz Hegel, constitui "a proposição principal de toda filosofia". O espirito infinito hegeliano é então como o círculo, no qual principio e fim coincidem de modo dinâmico, ou seja, como movimento em espiral no qual o particular é sempre posto e sempre resumido dinamicamente no universal; o ser é sempre resumido no dever ser e o real é sempre resumido no racional.1




A Estrutura Triádica



O método de alcançar o conhecimento é o método dialético que tanto fascinou Marx.
A lógica tem uma estrutura triádica como defendido por Fichte, tese – antítese – síntese, mas a sua força interna é a negação. Contrariamente ao que acontece na lógica clássica, a contradição não implica a paragem do processo lógico, mas apenas a busca de uma conciliação, integração e superação, para elaborar uma nova tese que irá sofrer o mesmo processo. Kant definira dois tipos de lógica: a lógica analítica e a lógica dialética. A primeira concentra-se nos dados dos sentidos e produz o conhecimento do mundo fenoménico; a segunda independe da experiência e afirma erroneamente (para Kant) que se podem conhecer as coisas em si – é a intuição. 
Hegel não concorda:



1 – A lógica analítica é do domínio das ciências da natureza e do empirismo, não da filosofia.

2 – A lógica dialética não trata com o transcendente ou com uma realidade abstracta, mas antes com a sua manifestação concreta, se bem que multiforme, como totalidade, e pode proporcionar conhecimento verdadeiro.

Concluindo: o espírito tem que ter manifestação concreta senão não existe e o finito não tem existência senão puramente abstracta, enquanto ideia, enquanto manifestação do espírito – fechou-se o círculo.

Só será espiral e não círculo porque Hegel afirma que após a “materialização concreta” o espírito retorna a si superado, mas para efeitos práticos trata-se do mesmo.

Kant não tinha ido tão longe no materialismo, na necessidade de manifestação material para que algo seja considerado real, e muito menos nunca foi ao ponto de afirmar que Bem e Mal são meros modos e que verdade e mentira são manifestações não mutuamente exclusivas. Kant não sabia o que era a coisa em si, o númeno, e não sabia como o mal radical tinha vindo até nós. Fichte resolveu a coisa em si: a coisa em si não existe; Hegel resolveu o Mal radical: o mal não existe fora de nós, não tem existência autónoma e temos que superar o bem e o mal (esta ideia erradamente atribuída originalmente a Nietzsche é, em verdade, de Hegel).





A Estrutura Triádica - A Negação



As categorias lógicas como o ser, o devir, o uno, o múltiplo, a essência, a existência, a causa, o efeito, o particular, o universal, o mecanismo, a vida, são examinadas e colocadas a descoberto as suas contradições internas, processo a que Hegel chama a negação. Neste processo de negação sistemática, a lógica passa de estática e conceptual a dinâmica e adaptável, definindo uma nova realidade cuja finalidade última é conduzir-nos à totalidade. Para Hegel, A não é necessariamente igual a A e A não é necessariamente diferente do que não é A. Os limites precisos são apagados.

O ser, como o da criança é, para Hegel, vazio. Ainda mais vazio que a tábua rasa de Locke. É o "em-si", vazio, abstrato ou indeterminado. É a premissa! Para quem a aceite como válida, é a tese. Como vimos, tomar consciência de si é confrontar-se com o outro, é a alienação, o sair de si para o mundo, para o Outro, o estranho. É o "por-si", a antítese. Mas o sair de si favorece, como vimos, a consciência de si, o regresso a si, o reencontro. É o "em-e-por-si", a síntese. Esta transforma-se em tese e reinicia o processo da consciência de si. O processo dialético obedece não a uma afirmação mas a sucessivas negações.

No primeiro momento encontra-se a tese que mais não é do que a elaboração pelo intelecto do conceito que ele presume estável. O segundo movimento é a antítese que mais não é do que a exposição das contradições internas contidas no conceito elaborado pelo intelecto. Esta negação é o núcleo central da dialética, a sua mola propulsora. A síntese constitui o momento especulativo, i.e., a razão capta a unidade da contradição e avança com esta síntese de opostos para uma nova totalidade concreta. É a afirmação (positivação) pela negação da negação contida na antítese e a sua elevação a um nível mais alto. A negação não vai significar aniquilamento como na lógica aristotélica, mas sim elevação e “enverdadeiramento”. Este elemento especulativo é a marca da lógica de Hegel.







Aufhebung ou Superação (revogação)



A lógica de Aristóteles trata de entidades individuais diferentes que se orientam num esquema dedutivo: se a=b e b=c, então a=c. É uma lógica estática. Hegel pensa sempre em termos de totalidade como produto dinâmico, i.e., uma totalidade que preserva o que supera como numa espiral. É uma lógica não mecânica ou orgânica. A este acto de juntar e preservar, Hegel chamou-lhe superação ou revogação. Para que algo suceda tudo tem que estar no devido lugar. É como se o passado fosse constitutivo, mas ultrapassado pela união de sucessivos opostos ou contraditórios.

"Aqui é o lugar oportuno para recordar o duplo significado da nossa expressão alemã aufheben (superar). Por um lado, aufheben quer dizer tirar, negar; nesse sentido, por exemplo, dizemos que urna lei, urna instituição etc., são suprimidas, superadas (aufgehoben). Por outro lado, porém, aufheben significa também conservar; e, nesse sentido, dizemos que algo está bem conservado através da expressão wohl aufgehoben. Essa ambivalência do uso linguístico do termo, pelo qual a mesma palavra tem sentido negativo e positivo, não deve ser considerada casual, nem devemos fazer disso motivo de acusação contra a linguagem, como se ela fosse causa de confusão; pelo contrário, nessa ambivalência se reconhece o espírito especulativo da nossa língua, que vai além da simples alternativa 'ou-ou' própria do intelecto".

(Parece pacífico, certo? Basta pensar na união de cada uma das hélices do DNA e ver como toda aquela dupla hélice em espiral é constitutiva…Não! Está errado. Muito errado! A hélice de DNA não une opostos mas complementares. Complementar significa ser parte de uma realidade, como o olho e o ouvido são partes do corpo humano, como a mulher e o homem são partes da natureza humana, como a chave e a ranhura são membros da fechadura. Não são opostos. Falaremos mais desenvolvidamente sobre esta noção quando fizermos a crítica de Hegel).






O Elemento Especulativo



O momento do "especulativo" é a reafirmação do positivo que se realiza mediante a negação do negativo próprio das antíteses dialéticas e, portanto, é a elevação do positivo das teses a um plano mais elevado. Se, por exemplo, tomarmos o puro estado de inocência, este representa um momento (tese) que o intelecto cristaliza em si e ao qual contrapõe, como antítese, o conhecimento e a consciência do mal, que é a negação do estado de inocência (a sua antítese); ora, a virtude é exactamente a negação do negativo da antítese (o mal) e a recuperação do positivo da inocência num nível mais elevado, que se tornou possível passando-se através da negação da rigidez que lhe era própria e, portanto, passando através da antítese, que desse modo adquire valor positivo, à medida que leva a tirar aquela rigidez. O momento especulativo, portanto, é o "superar" no sentido de que é ao mesmo tempo o "tirar-e-conservar".


(Portanto, a inocência, i.e., a criança, é um intelecto cristalizado; para se aceder à virtude existe necessidade do mal, pelo que o mal é constitutivo do bem superior, da virtude. Isto é quase o mesmo que dizer que para se tornar um adulto decente alguém tem primeiro que abusar de uma criança – a tal necessidade de violência sobre o outro no processo de identificação. O mínimo que se pode dizer é que esta maneira de pensar é repugnante, doentia!).



O momento "especulativo" ou "positivamente racional" é o que capta a unidade das determinações contrapostas, ou seja, o positivo emergente da resolução dos opostos (a síntese dos opostos). Escreve Hegel: "No seu verdadeiro sentido, o elemento especulativo é aquilo que contém em si como superadas aquelas oposições nas quais se detém o intelecto (e, portanto, também a oposição entre subjectivo e objectivo), e justamente dessa forma mostra-se como concreto e como totalidade". A dialética, assim como a realidade em geral e, portanto, o verdadeiro, é esse movimento circular que descrevemos e que jamais tem repouso. A distinção entre sujeito e objecto é também superada porque a história da revelação do absoluto dá-se como processo de auto-conhecimento do próprio absoluto:
“Tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real.”2


 “A eterna vida de Deus é encontrar-se a si mesmo, tomar consciência de si mesmo. Para isso tem que se desencontrar ou alienar para regressar sobre si mesmo. Voltando sobre si mesmo alcança a liberdade. Esta continuidade temporal não deve ser concebida como uma linha recta mas como um círculo que retorna a si mesmo. O círculo tem por circunferência uma grande quantidade de círculos internos, uns dentro de outros. Cada espírito regressa sobre si mesmo; (cada espírito é um círculo).”


A Negação Sistemática – Os Três Tipos de Contradição



Trata-se nos três livros da Ciência da Lógica (cada um com três secções e cada secção com três capítulos – a estrutura triplamente triádica):

1 – Primeiro livro: O Ser. O Ser e o Nada, a quantidade e a qualidade. A repetição dos movimentos da Fenomenologia, mas tendo como objecto não a consciência mas o pensamento.

"O ser é o mesmo que o não ser, porque tudo é, numa diferença multiforme e, portanto, nada é em concreto. A única realidade não é o ser mas o devir. O que não era ser logo se transformou em ser e o que era ser logo deixou de ser. O que não era agora é; o não-ser passou a ser. O que era deixou de ser: o ser passou a não ser. Assim se demonstra a identidade entre ambos. Desta dialética entre o ser e o nada, a conclusão é a de que o real é não apenas o que é mas também o que pode chegar a ser, o tornar-se. A realidade é não apenas o real mas também o possível. Do nada surge o ser e este regressa ao nada. Esta eterna circulação é a dialética do processo da vida, a dupla negação: ser-não ser, primeira negação; não-ser-ser resultante do devir, segunda negação. Se do nada surge algo é porque esse algo já estava contido no nada. Portanto, o nada é. O nada é o que pode chegar a ser e todavia não é. O ser é absoluto e o nada é relativo (está contido no ser, não é o seu oposto perfeito). É relativo a ser: o nada é! É a possibilidade abstracta e inconsciente. Só o que é racional pode ser consciente de si. Embora um embrião seja um ser humano, não o é para si. O homem é busca: busca-se a si mesmo. O homem deve chegar a ser para si o que é em si."


(Isto é o mesmo que afirmar que por uma rosa, um tomate ou o sangue serem vermelhos, o vermelho não existe! Ou que é igual ao incolor. A resposta adequada para esta questão é antes a da analogia do ser, i.e., o que há de comum no centro mais interno de todas as coisas. Ou que a água por poder ser sólido branco, líquido incolor ou gás, não existe, apenas existe enquanto mudança. O ser é um acontecimento, o devir é o processo, a transformação).

É interessante como as questões filosóficas são abordadas pelos grandes escritores, geralmente com mais equilíbrio do que os próprios filósofos. Existe o exemplo de Shakespeare, que coloca na mente de um louco, Ricardo III, o pensamento de Nietzsche. No caso presente, existe o caso de Camões, que apontando para a natureza mutável do mundo, como uma sua característica fundamental, em nada essa propriedade se coloca em conflito com a existência do mundo, com o seu ser - uma coisa só muda porque não deixa de existir, porque se transforma, como afirmou o fundador da química moderna, A. Lavoisier.

2 – Segundo Livro: A Doutrina da Essência. A Essência e a Aparência. Os opostos implicam-se: o interno e o externo. Definir um é definir o outro. Ideias fundamentais: as essências replicam-se, por isso o que não é pode chegar a ser (continuamos à espera de sereias e unicórnios) até se chegar ao espírito absoluto. O absoluto não se pode representar; a realidade não é apreendida por representação. Detenhamo-nos nesta última:

Se a realidade resulta da materialização do espírito para o retorno à ideia aperfeiçoada, pensamento ou espírito, a realidade é conhecida em si mesma pois ela nada mais é do que o devir ou o progresso do próprio pensamento. A realidade é a ideia e a ideia é a realidade. Não existe conhecimento fenoménico, como afirmara Kant, não existe conhecer por comparação e dedução, não existe uma forma mais perfeita de conhecer como afirmara Paulo de Tarso; em suma não existe a apreensão como aparência de uma realidade externa aos sentidos ou essência, não existe o conhecimento discursivo (o processo discursivo é apenas dialético e é uma mera etapa), o verdadeiro conhecimento é intuitivo. O homem intui uma realidade que lhe é intrínseca e à qual é ele próprio intrínseco. São os círculos dentro de círculos.
Hegel partilha com Aristóteles a ideia de que as essências são as próprias coisas no fluxo do devir, contrariamente à ideia de Platão de que as essências precedem as coisas mesmas e que só a existência as torna reais.

3 – Terceiro Livro: A Doutrina do Conceito: a particularidade e a universalidade. A identidade. Toda a realidade parcial não é realidade. É o tipo de contradição mais abstracto. A individualidade resulta de características que são únicas ou particulares, de características partilhadas ou universais, de um emaranhado de influências e relações. 

O julgamento sobre o que é um conceito. Contra Kant, Hegel não admite um númeno desprovido de conteúdo contra um fenómeno concreto, mas sim a realidade dentro da própria mente conhecedora. As antinomias de Kant quanto ao conhecimento não científico, i.e., como dizia Raskolnikov, a um argumento pode opor-se sempre outro argumento, estão resolvidas em Hegel: a realidade é ela própria “antinomínica”, i.e., contraditória.
O conhecimento não é mais do que um processo de produção de imagens – representação – até à verdade ela mesma (como exposto na Fenomenologia). E o que é a verdade? A verdade é o pensamento puro, o pensamento que se pensa a si mesmo. Não se pode representar com imagens.



As repercussões da filosofia hegeliana foram enormes, directa ou indirectamente, na sociedade moderna: o tudo é relativo para o relativismo, o tudo é contraditório para a teoria psicanalítica, o tudo é mudança e progresso para o evolucionismo. A nossa sociedade está ainda na sombra de Hegel e de Marx, no desprezo pelo particular, pelo homem concreto, na visualização do Estado – agora o Estado transnacional – como entidade máxima objectiva, no antropocentrismo, na crença num progresso virtuoso, no apagamento das fronteiras éticas, na manipulação da linguagem esvaziando-a do seu valor significante relativamente ao significado absoluto, como a verdade, a bondade ou a moral. O mesmo se pode dizer da sua concepção do ser. Miguel de Unamuno definiu bem a resolução do dilema: “Todo o panteísmo é apenas um ateísmo mal disfarçado e às vezes nem isso”. Unamuno, O Sentimento Trágico da Vida.





(Esta canção lembra muito a filosofia de Hegel e o delírio deísta: a Terra explodiu e nós encontramo-nos unidos pela cabeça, imersos numa gelatina viscosa, a tentar tomar consciência da nossa existência miserável).


António Campos




1 Tudo aquilo que nos circunda pode ser pensado como exemplo da dialética. Nós sabemos que o todo finito, ao invés de ser termo fixo e último, é mutável e transeunte; isso nada mais é do que a dialética do finito, mediante a qual o finito, enquanto em si, é diferente de si, sendo impelido também para além daquilo que é imediatamente e transformando-se no seu oposto." (A semente deve transformar-se no seu oposto para tornar-se broto, ou seja, deve morrer como semente; a criança deve morrer como tal e transformar-se no seu oposto para tornar-se adulto, e assim por diante). O negativo que emerge do momento dialético, em geral, consiste na "falta" que cada um dos opostos revela quando se defronta com o outro. Mas é exactamente essa "falta" que se revela como a mola que impele, para além da oposição, para uma síntese superior, que é o momento especulativo, ou seja, o momento culminante do processo dialético

.
(Portanto, se se trata de uma “falta”, não é lícito concluir que se trata de opostos, mas de idênticos complementares; por outro lado um adulto não é oposto de uma criança, é o mesmo ser com absoluta continuidade. Não existe ruptura ou dupla personalidade entre o eu-adulto e o eu-criança, trata-se do mesmo ser e não de um ser-outro, porque tecnicamente o presente não existe, ele é sempre um fragmento da régua do tempo que envolve algo do passado. Por outro lado é verdade que a semente morre mas não origina nenhum oposto nem nenhum ser-outro; ela origina o ser contido no seu ADN).


2 A "proposição especulativa", deve ser tal de modo a não pressupor a distinção rígida entre sujeito e predicado e, portanto, por assim dizer, deve ser plástica. O "é" da conjunção, então, expressará o movimento dialético com que o sujeito se translada ao predicado (em certo sentido, na proposição especulativa, tira-se e supera-se a diferença entre sujeito e predicado). "Esse movimento é o movimento dialético da própria proposição", diz Hegel. E ainda: "Só a enunciação do próprio movimento é a representação especulativa".


Vejamos um exemplo. Quando dizemos que "o real é racional'' em sentido hegeliano (especulativo), não entendemos (como na velha lógica) que o real é o sujeito estável consolidado (substância) e que o racional é o predicado (ou seja, o acidente ou atributo daquela substância), mas, ao contrário, que "o universal expressa o sentido do real". Portanto, o sujeito passa para o próprio predicado (e vice-versa). A proposição em sentido especulativo diria que o real se resume no racional e, desse modo, o predicado torna-se elemento tão essencial da proposição quanto o sujeito. Aliás, na proposição especulativa sujeito e predicado permutam as partes de modo a constituir justamente uma identidade dinâmica. 
De fato, Hegel, assim formula a proposição mencionada acima: "Aquilo que é real é racional; aquilo que é racional é real", de sorte que aquilo que antes era sujeito se torna predicado, e vice-versa (a proposição reduplica-se dialeticamente). Em suma, a proposição da velha lógica permanece encerrada nos limites da rigidez e da finitude do intelecto. A "proposição especulativa", ao contrário, é própria da razão que supera aquela rigidez, é uma proposição que deve expressar o movimento dialético e, portanto, é estruturalmente dinâmica, como também são dinâmicos a realidade que ela expressa e o pensamento que a formula.



(Tanto dinamismo apenas para chegar à estranha conclusão de que tudo depende da identidade entre a identidade e a não identidade. Difícil? O que significa é que o ponto de chegada tem que ser um e um apenas: a identidade entre o universal (a identidade) e o particular (a não identidade). É a alma da colmeia oriental, a roda, o determinismo, e a porta de Bradenburgo é a sua entrada no ocidente. O homem é escravo da mente colectiva e do destino: o deísmo).

Sem comentários:

Enviar um comentário