quarta-feira, 29 de abril de 2015

Chesterton - O Argumento Ontológico (1ª Parte)




No seu livro O Homem Eterno, Chesterton atinge provavelmente o ponto mais alto e eclético da sua
filosofia e teologia ao referir a religião alegórica como diferente fundamentalmente da religião mítica, ao admitir que a civilização caminha a par da barbárie, ao revelar que o monoteísmo é uma inversão dramática à normal progressão da religião mítica, e ao expressar o seu famoso argumento ontológico de Jesus Cristo, tão publicitado por Clive Staples Lewis e tão maravilhosamente desenvolvido por Vittorio Messori. O objectivo deste artigo é apresentar Chesterton como teólogo. Revelar um Chesterton autor de um argumento ontológico enunciado muito tempo antes deste argumento ontológico do Deus-homem de 1925.

Chesterton descobriu a existência real das coisas ao recusar a proposta do mal ilimitado, por recusar o “é proibido proibir” que realmente expressa um absurdo sem significado, atendendo à contradição de termos, mas que é tomado como um muito rabelesiano “faz o que te apetece”. Mas como Chesterton explica em Ortodoxia, existe uma diferença fundamental entre o assassino e o assassinado. Essa filosofia do egoísmo, de que Nietzsche foi um dos mais dotados apóstolos, é a marca da modernidade: “Também sonhei que tinha sonhado toda a criação. Fiquei com as estrelas como prenda; numa mão fiquei com o sol e na outra com a lua. Era eu quem estava por detrás e na origem de todas as coisas; sem mim, nada do que existe existiria. Quem já esteve neste centro do cosmos sabe o que é estar no inferno.”1

Descobriu que a vida importa e que não é uma ilusão: “nenhum homem espera tomar tranquilamente o seu pequeno-almoço no dia seguinte a ter incendiado Londres.”2 Para Chesterton, o maior problema dos filósofos é “como pode o homem conciliar o facto de se sentir estranho e ao mesmo tempo em casa neste mundo?” E essa questão só pode ter uma resposta: não usar a mente apenas para se contemplar a si próprio, mas para ver para fora de si: “A mente conquista uma nova província como um imperador, mas apenas porque a mente respondeu a uma campainha como um servo”.3

É esta atitude de humildade intelectual que conduz ao conhecimento: no mundo material à ciência, no mundo antropológico à ética, e no mundo espiritual à religião. Mas onde Chesterton realmente se distingue, onde ele realmente se torna querido por pessoas das mais diversas proveniências, é na sua particular expressão de júbilo, a alegria que aponta para o homem, para o universo e para Deus. 

A primeira grande contribuição de Chesterton para o pensamento contemporâneo foi a sua ênfase no papel desempenhado pela “maravilha” na Cristandade. Maravilha, no sentido de êxtase infantil e contentamento que um presente desperta, em grande medida por ser surpresa. Uma religião de alegria e de graça; não de monotonia, de mecanicismos e de vãs repetições. 

A sua segunda grande contribuição foi a ligação intrínseca entre esse espanto maravilhado e o sentido de humor. A força dialética que os faz funcionar é a humildade, uma negação de si, um “esquecer-se de si”. O humor liga-se à humildade e ao perdão, pois é um constatar divertido das imperfeições desta vida. Este humor e humildade conduzem ao Deus da alegria. Para trás fica o deus-tudo do espinosista Goethe, com o “temor” e a sua “austeridade”. Goethe nunca conseguiu colocar o humor nas suas belas obras, precisamente porque via o sentimentalismo como uma fraqueza. 

(Nas notas fica o seu ensaio sobre a humildade).


Realmente a evidência da existência de Deus assenta mais numa convergência de probabilidades, como afirmava Newman, do que numa prova única e irrefutável. No entanto, vários foram os exercícios da razão humana para provar a existência de Deus: Descartes (dedutivo), Locke (empiro-crítico), Leibniz (cosmológico), Gödel (lógico modal), Gregório de Nissa (desejo), Agostinho (verdade), Anselmo (perfeição), Tomás (transitoriedade), Pascal (limites da acção), Marcel (esperança) e…Chesterton (alegria).

Para Chesterton, a alegria como manifestação da existência é um poderoso indicador da nossa ligação a Deus. Alegria, êxtase, felicidade, sentido de humor, jovialidade, júbilo, podem ser sumariamente resumidos como um rumor de um outro mundo que nos faz sair da cadeia de causa-efeito do nosso mundo material.4 Trata-se de uma abertura que se desenrola, no entanto, ao nível da nossa experiência empírica. Chesterton indica-a, na boca da Mãe de Deus:5

“Digo-te, não para teu conforto

Sim, não para o teu desejo

Sabes, o céu ainda tem que escurecer

E o mar que inundar

A noite cairá três vezes sobre ti

E o céu como uma mitra de ferro

Tens alegria sem uma causa,

Sim, fé sem uma esperança?”

É nesta alegria sem uma causa que reside o argumento ontológico de Chesterton. A sua natureza, quando não depende da experiência empírica nem tem uma raiz ética, tem origem a um nível mais profundo. A alegria jubilosa é mais fundamental e anterior do que a felicidade e o prazer. Tem uma origem metafísica. Esta alegria relaciona-se com a admiração, o maravilhamento e o fascínio, com o constatar da existência. É a alegria genuína que lembramos da nossa infância. Raramente se atinge um pico de felicidade tão despreocupada e jubilosa como na infância. É uma afirmação da doutrina da Criação e, portanto, da verdade do teísmo.6 O mundo possui uma bondade intrínseca, porque foi criado e porque foi criado por Alguém bom. Por Alguém que o julgou digno de ser feito. “Uma coisa digna de ser feita deve ser feita, mesmo que seja mal feita.”7 

Porque fazer uma coisa que não é perfeita? Talvez num sentido humano porque a arte popular não deixa de ser arte e num sentido divino porque a liberdade exige incompletude tal como a diversidade exige a beleza e o grotesco.

Tal como para Newman na questão da percepção religiosa, Chesterton atribui à criança a melhor percepção do nosso mundo. A criança experiencia a verdadeira natureza da alegria. A criança percepciona o mundo à luz de uma manhã eterna, interpretando-o como se ele fora tão novo quanto ela. Chesterton não tem qualquer interesse freudiano na infância como estadio de desenvolvimento da personalidade. Chesterton distingue-se da maioria dos críticos literários precisamente por recusar o universo freudiano que atribui à criança um mero papel na etapa do desenvolvimento: “Alguns dizem que Hamlet não só odiava o tio mas também odiava secretamente o pai, pela simples razão de que gostava da mãe. Em Hamlet há uma frase que diz: O mais importante neste tipo de coisas são apenas sombras.”8


É o olhar da criança que lhe prende a atenção: “Eu nunca perdi o sentido de que esta era a minha vida real; o princípio do que deveria ser uma vida mais real; uma experiência perdida na terra dos vivos.”9 Chesterton não é ingénuo ao ponto de não reconhecer a presença do mal, a perfídia, a dor, o sofrimento e a infelicidade, mas atribui-lhes uma textura diferente, um domínio radicado neste mundo: Não existem coisas más, apenas mau uso das coisas. Se se quiser, não existem coisas más mas apenas pensamentos maus; e especialmente más intenções. Só os calvinistas podem pensar que o inferno está cheio de boas intenções. Isso é exactamente o que lá não existe. Mas é inteiramente possível existirem más intenções sobre coisas boas; e as coisas boas, como o mundo e a carne, foram distorcidas por uma intenção má chamada o diabo. Mas ele não pode tornar as coisas em más; elas continuam como no primeiro dia da Criação. A obra do Céu é material, a criação de um mundo material. A obra do inferno é inteiramente, e apenas, espiritual.”3

No entanto existe uma alegria intrínseca nas coisas só pelo facto de existirem, que é percebida quando se olha para elas como se se vissem pela primeira vez: “A mera existência era extraordinária comparada com nada. Mesmo que a luz do dia fosse um sonho, seria um sonho luminoso, não um pesadelo.”10


A infância permanece o melhor critério para aferir a sensibilidade num adulto, na medida em que é o melhor testemunho da natureza da realidade. Este mundo não contém só o necessário à sobrevivência; ele vem cumulado de dádivas. Não nos limitamos a satisfazer as nossas necessidades; tal satisfação vem acompanhada de prazer. O mesmo se pode dizer da arte, que do ponto de vista puramente material é completamente inútil: “A arte existe, digamos que como constitutiva da nossa natureza, para nos revelar melhor a natureza de Deus; ou, traduzindo as coisas em termos da nossa psicologia, para acordar e manter vivo o sentido do maravilhoso. O objectivo de qualquer peça de arte é atingido quando nós afirmamos de um objecto, seja uma árvore, uma nuvem ou uma figura humana: Ah, eu já tinha visto isto um milhão de vezes e, no entanto, nunca o tinha visto (assim)!"11 O mundo da criança não é o mundo perdido dos contos de fadas, o nosso é que é um mundo amputado de maravilha.

Esta percepção da criança de que a existência é uma dádiva, enche-a de alegria. É a chave para a ontologia, ironicamente recebida no alvorecer da consciência e não por meio de um obstinado processo de raciocínio. A criança não vive de abstracções mas de coisas concretas: “A vitalidade da poesia como exemplificado por Browning torna-se mais evidente naquela natureza “fundamental e comum” que era o seu objecto — o amor acima de tudo - mas expresso pelas coisas mais concretas e não por abstracções. Foi esta radicação ao prosaico que protegeu Browning do movimento decadente que se desenvolveu pouco antes da sua morte.”12

O papel da filosofia é abrir esse presente, desvendando as suas implicações, até chegar ao primeiro princípio. Esse presente é como todo o presente: uma dádiva inesperada, de alguém que nos ama e, de alguma maneira, uma surpresa e um mistério. É exactamente por isso que quando perguntamos qual é a prenda que nos vão oferecer, nos é respondido que não se pode dizer, porque é…surpresa. Esta resposta desconcertante remete-nos para uma posição de humildade, um sem-jeito, um tirem-me daqui. E é por estarmos nessa posição de humildade e de um certo não domínio da situação, que se ouve por vezes dizer: “não gosto de receber presentes”. Não é o presente que está em causa, é a atmosfera…

É então deste modo, com esta atitude “filosófica”, que se adquire a atitude “teológica”. É necessário ser como criança para conhecer o Reino do Céu (ou para valorizar o mundo da Terra): “O nosso mundo não é o melhor mundo possível; o nosso mundo é o melhor dos mundos impossíveis.”13

Esta atitude de criança não é uma atitude de criancice. Não é aquela atitude de menino mimado ou de criança caprichosa e petulante que comete todo o tipo de pecados e, mesmo na idade adulta, se recusa a aceitar a responsabilidade. Como se todo o mundo estivesse errado e não ela própria, como Dorian Gray. Perde a capacidade de se deslumbrar, embrutecida pelo prazer; perde a capacidade de agradecer, embotada pelo orgulho. “Só um grande homem sabe o quanto é pequeno”13 demonstra uma atitude de criança, mas o homem mesquinho que pensa ser o maior ilustra uma atitude de criancice.14

“O facto de tantos estudantes modernos do transcendente possuírem um desejo de pertencer a uma aristocracia espiritual, de se sentarem em tronos pelos quais há que competir, tal como no caso dos lugares de um governo, é uma prova simples de que não possuem em si mesmos os rudimentos da espiritualidade. A verdadeira espiritualidade é tão humilde como um apaixonado e tão pouco cínica como uma criança.”15

Esta noção de uma humildade que conduz à alegria de um regresso a casa, i.e., à descoberta de algo que pensámos ser um novo porto, mas que afinal é a nossa casa, partilhada por tantos intelectos deslumbrantes, por tantos heroísmos simples; a descoberta de um jardim ou de uma terra onde sempre se podem descobrir coisas novas: “O lugar confiável de todas as verdades do mundo, o banquete que nunca acaba. (…) A Igreja Católica é o lar natural do espírito humano.”16

Chesterton relaciona a alegria com a atitude de humildade. Ser alegre é ser humilde e só quem é humilde consegue ser alegre e transmitir a sua alegria.15 O paralelo com a teologia é evidente. Só por uma atitude de humildade a criatura se pode aproximar do Criador. Mas esta conclusão também esconde uma outra: o homem é uma imago Dei, uma imagem de Deus. Pela razão humana pode chegar-se a Deus: “O místico que vivencia o momento em que não existia nada excepto Deus, visualiza aquele início sem passado, em que não existia nada de nada. Ele não só aprecia tudo mas também o nada de onde surgiram todas as coisas.

De certo modo, São Francisco encarna e responde à terrível ironia do livro de Job; de certo modo ele estava presente quando foram lançados os fundamentos do mundo, com as estrelas da manhã a cantar e os filhos de Deus a clamar por alegria.”17 


Entendem-se agora melhor as palavras de Chesterton, não como mera retórica ou como expressão piedosa, mas como uma conclusão filosófica: “Mantenho que o agradecimento é a mais alta forma de pensamento e que a felicidade não é mais do que a gratidão duplicada pelo espanto.”19


António Campos

1 Chesterton, O Poeta e os Lunáticos, 1929                                                                      

2 Chesterton, A Plea for a Popular Philosophy, Daily News, 22 de Junho de 1907.

3 Chesterton, São Tomás de Aquino, 1925.

4 Peter Berger, A Rumor of Angels, Doubleday, NY, 1969.

5 Chesterton, A Balada do Cavalo Branco, 1911.

6 Aidan Nichols, A Grammar of Consent, University of Notre Dame Press, 1991.

7 Chesterton, Os Disparates do Mundo, 1910, Ed Diel, 2008, com prefácio de José Blanc de Portugal, de 21 de Agosto de 1958.

8 Chesterton, The Game of Psychoanalysis, The Century Magazine, 1923.                    

9 Chesterton, Autobiografia, 1936.

10 Chesterton, Charles Dickens, 1906.

11 Chesterton, The Thing, 1929.

12 Chesterton, Browning, 1903.

13 Chesterton, O Homem Eterno, 1925.

14 É neste sentido que São Paulo nos adverte que quando somos crianças nos portamos como crianças mas quando nos tornamos adultos, devemos abandonar as coisas de crianças, i.e., devemos aceitar as responsabilidades. Esta afirmação parece, mas não é, uma contradição à afirmação de Jesus Cristo de que das crianças é o universo – “se queres conhecer o universo, o melhor é ajoelhares”, diz Bono.

15 Chesterton, The Mistery of the Mystics, Daily News, 30.08.1901.

16 Chesterton, Catholic Church and Conversion, 1926.

17 Chesterton, A Defense of Humility, The Speaker, 13 de Abril de 1901:

 “A humildade segue com a precisão do relógio todas as grandes alegrias da vida. Ninguém esteve alguma vez apaixonado sem se entregar a uma orgia de humildade; os adolescentes expressam humildade em face dos seus ídolos. Os pagãos insistiam na auto-afirmação, porque na essência da sua crença encontravam-se uns deuses que, embora justos e fortes, eram místicos, caprichosos e indiferentes. Mas na essência do cristianismo encontra-se uma aliança com Deus que entrega ao homem uma libertação. O cristão sente-se seguro e com uma bênção que o eleva ao nível das estrelas mas imediatamente descobre a humildade. É um paradoxo: é aquele que está protegido que é humilde. Esta combinação de alegria e auto-prostração é demasiado óbvia para que seja ignorada. Ao rejeitarmos a humildade como virtude assistimos ao colapso da alegria, quer na literatura quer na filosofia. Do revivalismo da auto-afirmação dos gregos viajámos para o seu pessimismo. Quando estamos verdadeiramente felizes, achamos que não somos merecedores de tamanha felicidade. Mas quando nos emancipamos do divino estamos absolutamente seguros que temos direito a tudo e mais alguma coisa.

A explicação para estes factos é entender as verdadeiras raízes da humildade: uma virtude metafísica e poderia mesmo afirmar-se, uma virtude matemática. As pessoas que consideram a humildade uma coisa degradante tendem a admirar a infalibilidade e a auto-afirmação, descartando tudo aquilo que julgam abaixo da sua inteligência. Acontece que ao descartar sucessivamente as coisas, acabamos nós próprios isolados. Quando fechamos a porta ao vento é como se o vento nos fechasse a sua porta. Onde quer que um egoísmo orgulhoso conduza é certo que não conduz ao conhecimento. O expoente mais brilhante da escola do egoísmo, Nietzsche, com a sua lógica penetrante e admirável, reconheceu que o egoísmo consiste num olhar distanciado para os fracos, os medrosos e os ignorantes. O olhar distanciado pode ser uma coisa boa; acontece que nada se vê com clareza, desde as casas às couves, quando se observam por um balão. O filósofo do ego vê tudo, sem sombra de dúvida, de um céu alto e rarefeito; só que vê tudo encolhido…ou deformado.

Se um homem quiser ver tudo como é na realidade, a atitude terá que ser outra. Terá que se despojar de tudo aquilo que tende a dividi-lo do seu objecto de estudo. Parece que o nosso corpo pode ser um estorvo para estudarmos tudo aquilo que pretendermos estudar (i.e., temos que nos camuflar, como quando queremos estudar os animais no seu habitat). Parece que temos que enveredar por um processo de asceticismo mental, uma castração do ser, se queremos vislumbrar o bem que transborda de todas as coisas. Parece evidente que por vezes nos devemos portar como uma janela: claros, luminosos e…invisíveis.

Aprendemos na escola que um ponto não tem partes nem magnitude. A humildade é a arte luminosa de nos reduzirmos a um ponto; não a um ponto pequeno ou grande, mas a um ponto de tamanho nenhum, de forma a que as coisas apareçam como realmente são, de uma dimensão extraordinária. Que as árvores sejam grandes e a relva curta resulta do uso das nossas próprias medidas, em comparação com a nossa estatura. Mas para o espírito que conseguiu despojar-se das suas dimensões, a relva é uma imensa floresta com os seus habitantes e os seus dragões; as pedras da estrada são montanhas incríveis, os dentes-de-leão são gigantescas fogueiras que iluminam tudo à volta, e sinos da charneca parecem, com os seus talos, cada um maior do que o outro, planetas suspensos no céu. Aqui e ali se vislumbra uma floresta milagrosa que ilumina o alto das suas copas com um pôr-do-sol escarlate, um deserto despojado possuindo uma única rocha, um oceano possuindo monstros tais que Dante não se atreveria a imaginar.

Estas são as visões daquele que, como a criança nos contos de fadas, não receia ser pequeno.

Por seu lado, o sábio é como o gigante, cada vez maior, o que significa que as estrelas são cada vez mais pequenas. Tudo sucessivamente se torna desinteressante; o mundo intrincado da vida feita de coisas comuns torna-se para ele tão perdido como o mundo dos protozoários para quem não tem microscópio. Ele ergue-se sempre entre desoladas eternidades. Sistema atrás de sistema, universo após universo, tudo esquece e tudo despreza.

Mas esta visão magnificente das coisas, tal como elas são, os gigantescos malmequeres, os celestiais dentes-de-leão, a grande odisseia dos oceanos de estranhas cores e das árvores de formas peculiares, da poeira do afundamento de templos e de cardos como supernovas, esta visão colossal cessará com o último dos humildes.”

18 Chesterton, São Francisco, 1923.


19 A Idade das Cruzadas, Uma Pequena História da Inglaterra, 1917.
 

domingo, 5 de abril de 2015

UMA APROXIMAÇÃO A CHESTERTON (parte II)


 
Nesta nossa pequena introdução a Chesterton, insistimos um pouco na duração denominada Idade Média, pois ela mereceu uma substancial atenção por parte do autor inglês. Não poderia ser de outra maneira: além de mal estudada pelos teóricos e desconhecida pelo público em geral, a época era (é ainda) vítima de boatos e vitupérios generalizados, lendas negras e preconceitos intoleráveis, enquanto se foi tornando ao longo do tempo objeto de um acervo histórico sem qualquer ajuste nem integridade: a idade das trevas. Nenhuma outra época é tratada de semelhante forma por profissionais e amadores da História e do Pensamento.

O nosso autor reconhecia que escalpelizar os séculos em que o cristianismo surge e em que acaba por se afirmar, era imprescindível para o leitor interessado poder reter uma perspetiva reta, equilibrada e verdadeiramente equidistante do conjunto. Reencaminhar a sociedade para essa era remota ou desejar imbuir nos espíritos seus conterrâneos o seu perfume e carisma particulares, não foi o ofício a que se impôs. Estava longe de ser um romântico revivalista. Não era de todo um pré-rafaelita. O seu foco foi sempre o presente, a sua única real preocupação foi o seu quotidiano – a situação da sua Inglaterra e do mundo. O trabalho de arqueologia (uma espécie muito sui generis de “arqueologia do saber”) que levou a cabo, obedeceu a uma necessidade lógica e operativa: dar a conhecer a realidade sentida e vivida nos primeiros séculos cristãos. Em vez de oferecer um inventário cronológico ou de enveredar por uma desconstrução polemista, preocupou-se em apresentar uma fenomenologia histórica. Nesse enquadramento, é lícito apelidar a sociedade medieva como um corpo místico.

 

É extremamente difícil para nós - concedo sem qualquer azedume ou estranheza - conceber sequer uma aproximação honesta a tal conceito social e comunal. Estamos muito arredados e completamente alheados desse espírito de proteção e do dever (já o dissemos). Porém, não há escapatória para um ser humano humilde e honesto, homem ou mulher sério e de mente aberta, para o cidadão coerente contemporâneo que deambula pelas ruas apinhadas e confusas das nossas cidades individualistas. Apresenta-se como a única alternativa possível para olhar a época de relance sem preconceitos de qualquer origem. Só desta forma poderemos entender o acontecimento místico das Cruzadas.

Sem dúvida alguma, Chesterton dominava muito bem os heréticos seus contemporâneos. Já anteriormente os referimos. (Especial atenção tiveram os socialistas fabianos George Bernard Shaw e H. G. Wells e os calvinistas). Além das obras Ortodoxia, Heréticos, O Homem Eterno, de salientar duas autênticas obras-primas no campo da biografia e da hagiografia: São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. Através do estudo da vida destes dois santos, cada um com histórias de vida e características pessoais nos antípodas do outro, o nosso escritor conseguiu demonstrar a riqueza e a grandiosidade do catolicismo: Deus aprecia a diversidade e como tal, escolhe os aparentemente incompatíveis polo sul e equador para o demonstrar inequivocamente: envia um boi mudo da Sicília e o primeiro sitgmata para colorir a face da terra. O lado literato e o lado romanesco da vida. Nenhum complementa o outro, nenhum obscurece o outro: trabalham ambos para a mesma Obra; são ambos servos do mesmo Senhor, contribuindo com virtudes e qualidades diversas. Um moderado e um apaixonado de mãos atadas à Palavra de Deus. Jamais se contradisseram, e sem nunca se terem cruzado nesta vida, concordaram em tudo o que é fundamental.

 

Assim é na vida de todos os santos: como humanos, são únicos e irrepetíveis, como cristãos, são exemplares, todos convergindo para o mesmo centro. Mas nessa inconsciente convergência, desferem, quantas vezes inocentemente, inexoráveis golpes profundos nas teses dos inimigos da humanidade. Pois para um cristão, um inimigo de Deus é um oponente sério e perigoso da humanidade. Representa o mais grave atentado contra ela. As heresias e os heréticos, antigos e modernos, que Chesterton aborda ao longo da sua vida e obra, têm essa vil duplicidade. Prejudicam o Homem e desrespeitam Deus.

 


 

Talvez nem seja necessário ir ao fundo da questão. Analisemos a leitura chestertoniana sobre determinado e determinante fenómeno. Durante décadas, o simples e anónimo cidadão romano convivia com uma estranha ideia na cabeça: é preciso destruir Cartago – delenda est Carthago. Existia alguma coisa de mórbido com aqueles fenícios, qualquer coisa quase de inominável. De modo que não bastaria conquistar, explorar ou capturar – era imperativo aniquilar. Inclusivamente no Senado, tornou-se prática corrente muitos oradores finalizarem os seus discursos com esse estribilho, parecendo querer assegurar que permaneceria intacto através dos tempos para ser devidamente decifrado pelos vindouros. Como uma marca ou sinal de eminente perigo. Tivessem sido melhor instruídos ou mais esclarecidos, os simples homens rurais da república saberiam denominar o mal - Baal/Moloque.
 
Esse pérfido deus dos cartaginenses alimentava-se de crianças e de auto-mutilações adultas. Enquanto o pacato agricultor romano orava aos seus deuses domésticos feitos de barro, oferecendo pequenos sacrifícios animais e acendendo algumas velas, no outro lado do Mediterrâneo, a poucas milhas da Sicília, matavam-se impiedosamente milhares de crianças. O célebre Aníbal, o tresloucado cartaginês que levou dezenas de elefantes a percorrer meio continente europeu e a atravessar os Alpes, que dizimou à fome e ao frio os seus correligionários antes de poder ter à disposição a vida dos seus inimigos latinos, quantos infantis não terá sacrificado ao pérfido deus antes do seu monumental exército se ter feito ao caminho? Que quantidade de sangue inocente derramado terá sido adequado para uma empresa desse calibre? Baal certamente não ficaria satisfeito com pouco. (Séculos mais tarde, no outro lado do Atlântico, os europeus iriam assistir a indescritíveis espetáculos semelhantes).

 

A Roma pagã – e não somente os Cipiões - não descansou enquanto não destruiu essa maldita cidade-estado, adepta sinistra de um paganismo pérfido e cruel, arrasando-a até aos alicerces, e no fim - numa ação bem mais elevada do que um mero ritual, num efeito bem mais que simbólico -, para que nada de semelhante pudesse voltar ali a despontar, salgou o chão – e Cartago nunca voltou a erguer-se. Tratou-se de um caso único na política de expansão romana. Em vez de aumentar o seu território, em vez de aproveitar as imensas riquezas e infraestruturas da poderosa cidade, em vez de jogar a cartada diplomática em que era mestre, a república romana optou conscientemente pela total e irreversível aniquilação. Há paganismo e há paganismo – é imperativo proceder à aceção de superstições.

 

Na sua interessantíssima aportação ao acontecimento Abraão-Isaac, Chesterton insiste no escândalo que reveste a ordem de Deus: o pai oferecer em sacrifício o seu próprio (e único) filho. Por se tratar verdadeiramente de um escândalo (escândalo em sentido bíblico) é que o episódio assume uma importância decisiva e elucidativa. Efetivamente, se se tratasse de um ato comum entre os judeus - de resto, ordinário entre vários povos pagãos - o imperativo divino não revestiria o carácter exclusivista do insólito para o povo hebraico. A verdade é que Deus não permitiu. Em vez de Isaac, Abraão apenas terá de oferecer em holocausto um animal, prática que se manterá dentro dos desígnios divinos até à proclamação da Nova Aliança.

 

Jesus, no exorcismo ao geraseno, não hesita em aceder ao pedido do demónio Legião, permitindo que ele possua a horda de porcos, que de resto, logo se precipita no mar. Afinal, as aves do céu não semeiam nem colhem, não dispõem de celeiros, mas mesmo assim Deus as alimenta – e não somos nós, homens e mulheres, muito mais que as aves? É a mesma conceção de São Francisco quando canta a beleza dos animais e da natureza: o Cântico das Criaturas. Está completamente arredado de qualquer paganismo ou naturalismo, pois filtrado pela visão de Deus. Como sempre acontece com todo o paganismo e com todo o naturalismo, a ligação direta e a submissão passiva à natureza acaba por resultar em algo que é contranatura. Assim com os gregos, com os cartaginenses, e em menor grau, com os romanos. A estrita observância do natural em nós, além de rebaixar-nos ao nível da abjeta bestialidade, é um impedimento de aceder ao sobrenatural – a Deus. A conexão e a promiscuidade com a natureza amesquinha-nos ao ponto de não sermos nada mais que lama. O corte é profundo, acabando por ser uma fronteira dimensional, em que o Homem se vê afastado do Senhor e a sua alma conspurcada.

 

Foi precisamente esse o trabalho de sapa da Idade Média: após séculos de paganismo desenfreado, a Igreja viu-se forçada a equilibrar o homem e a sua conduta, ao mesmo tempo que procedia a uma separação entre o trigo e o joio. A torre da catedral gótica teve que romper a basílica clássica pagã. Nada se perdeu, e como tudo se transformou! Até que São Francisco pudesse cantar hinos fulgurantes à irmã natureza, até que Petrarca pudesse surgir em todo o esplendor literário, foi um longo percurso que teve de ser trilhado. Atentemos nas palavras de Etienne Gilson, fazendo um paralelo entre Santo Agostinho e o poeta de Arezzo: “ele escrevia em latim melhor do que o próprio Petrarca, logo Petrarca só podia respeitá-lo; era um santo, logo Petrarca podia confiar-lhe o cuidado de sua alma; esse santo sofrera as mesmas desordens de costumes que Petrarca, logo podia compreender Petrarca; ele se curara, logo podia curar Petrarca”, e “podia-se ser cristão, e sê-lo até a santidade mais sublime, sem se crer obrigado a desertar os clássicos”. O Bispo de Hipona significou para Petrarca a possibilidade do convívio pacífico e frutífero entre os grandes autores pagãos e o cristianismo; que havia uma ponte entre Cícero e Santo Ambrósio.

 

Em abono de Chesterton e em detrimento de Foucault, podemos inferir que a sua obra não pertence ao seu tempo - ou a qualquer outro: ela é eterna. Nela, o inglês defende, disponibiliza, analisa e reergue o que designa por Filosofia Cristã, que mais não é – e é muito, ou melhor, é tudo! – do que o catecismo e a tradição católicas. Tal como o Concílio Vaticano II, não erige nenhum novo dogma, não traz qualquer novidade metafísica ou ontológica, não propõe um recente e brilhante princípio filosófico ou teológico: simplesmente remete a mensagem dos evangelhos – a Eterna Revolução - para os condicionalismos com que diariamente se convivia em Inglaterra, na Europa e no mundo.

 

Como bom católico, Chesterton participou ativamente na obra da Igreja – e desse modo, cumpriu a vontade de Deus. Acusar este pensamento de ser apropriado apenas para velhos e para indivíduos quadrados é um erro indesculpável em matéria de geometria e uma notória falta de preparação, quanto mais não seja, em ciência política. É confundir Euclides com César. Além de demonstrar uma total e completa ignorância sobre aspetos característicos do conservadorismo, acrescenta a uma longa lista de ignorância teológica e filosófica, um preconceito contra os idosos que não podemos deixar de lamentar e reprovar. Além de ser contraproducente para os proponentes da tese: a velhos iremos chegar todos (– com a saúde de Deus). Para quê estar antecipadamente a dar tiros nos pés?

 

 

 

Paulo Pinto

2015

UMA APROXIMAÇÃO A CHESTERTON (parte I)


Foucault afirmou que o sujeito está irremediavelmente preso aos predicados do seu próprio
tempo, ou seja, delimitado pelas características paradigmáticas da episteme e moldado pelas suas respetivas consequências cognitivas e linguísticas do pensar e do dizer - ao seu quadro reflexivo e ao seu enquadramento epistemológico. Assim, seria tão paradoxal avaliar um cientista, um autor ou um artista, pelo seu aparecimento prematuro como pelo seu cariz reacionário, pois afinal, ele não é mais do que um mero produto da sua época - um mero recipiente passivo.
Apesar de G. K. Chesterton defender uma posição ontológica diferente, é lícito colocar uma questão logo de início. Será o autor de Ortodoxia um indivíduo fora de época? Um homem ultrapassado pelos acontecimentos, completamente desfasado do seu tempo? Um género de vingador do espírito medieval, desse vil espírito convenientemente massacrado e irremediavelmente varrido do mapa europeu pelos ventos impiedosos da História? Ou então encarnará uma espécie de príncipe nostálgico da idade das trevas, um protótipo esquisito, onde se combinam de forma harmoniosa e escandalosa, o tipo dogmático, o tipo simpático e o tipo bonacheirão? Como classificar esse estranho ser, disposto a trazer de volta os obscurantismos religiosos esmagados pela modernidade e pelo martelo de Nietzsche? Não passará, enfim, de um simples e simplório – embora extremamente erudito -  inquisidor tardio?
 
 
Pois um facto parece certo. Tivesse nascido três séculos antes, e certamente não teríamos sido brindados com e pelo fenómeno Chesterton. De facto, a sua obra só se compreende perspetivada a partir de uma cultura europeia secularizada, já totalmente alheada e estranha ao espírito religioso (ao espírito, vá). Após os efeitos devastadores perpetrados pelo protestantismo, pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, o cristianismo – nomeadamente na sua versão católica – viu-se apeado novamente para as catacumbas – quando não para as masmorras e guilhotinas. Se nos tempos medievos, as pessoas nasciam num ambiente cristão, cresciam, fortaleciam-se e tornavam-se adultas no seio familiar, aconchegante e firme dos valores cristãos, seguras da compreensão de si, da dos seus vizinhos e da do seu mundo, repousando serenamente e confiadamente na equivalente retribuição por parte dos demais, nos dias de Chesterton a cosmovisão era outra. Na ausência dessa aura, o autor sentiu-se obrigado a levar a cabo a tarefa de levantar o pó do catecismo, de aclarar e esclarecer a história dos combates da Igreja, de iluminar e eliminar as falsas lendas negras que se foram construindo em torno do Magistério e do seu percurso milenar, de polir as vetustas verdades, e de separar, navegando-as, as águas turvas do ateísmo militante nas suas variadas e multiformes facetas – quando não a andar sobre elas.
 
Qual Pedro, qual Paulo, dois mil anos antes, o criador do Padre Brown sentiu necessidade de evangelizar os contemporâneos, de mostrar a beleza, a justiça, o bom-senso, a verdade eterna dos dogmas preservados na Santa Igreja. Em vez de fariseus e saduceus, em vez de gregos e romanos pagãos, em vez de gregos romanizados ou de romanos helenizados, deparou-se com comunistas, socialistas, ateus, evolucionistas, relativistas, orientalistas, espiritistas, capitalistas – e até neo-pagãos fascistas e nazis. Nos seus célebres debates e disputas acalorados, trouxe ao panorama intelectual moderno conceitos esquecidos e considerados inapropriados - quando não ofensivos ou risíveis, consoante a sensibilidade, a tolerância, a disposição e o humor dos oponentes – tais como a Queda, a Ressureição, a Verdade, a Heresia, o Milagre, o Senso-Comum – Deus.
 

Haverá sempre aqueles que confortavelmente sentados (alguns decerto deitados) nas suas cátedras, apontarão o dedo ou cerrarão os punhos, enquanto consistentemente esperneiam de raiva, indignando-se e rangendo os dentes, rasgando as vestes com tais apologéticas: afirmarão que se trata de nebulosidades retrógradas, estados de alma petrificados e putrefactos, desenlaces inevitáveis da caricata, desastrosa e desumana falta de educação e de escolaridade; resultado eminente da ausência de cultura e de formação académica – sintoma inequívoco de analfabetismo.
 
Neste instante, somos compelidos a condescender com esses: definitivamente, não é nos curricula atuais que vamos encontrar a Salvação – nem sequer um salvamento momentâneo. No entanto, por caridade, e apenas por breves momentos - comprometemo-nos desde já -, vamos fazer-nos seus convidados e combinar acertar agulhas; vamos pois então, quais inapropriados e indignos penetras, consentir na sua tese – anunciaremos que professar e defender a fé cristã é sinal inequívoco de superstição, ignorância e estultícia. Por conseguinte, com toda a humildade de que somos capazes, com todo o reconhecimento e respeito que essas entidades nos provocam, invocaremos a sua sagaz sabedoria e faremos um apelo à sua paciência para connosco: através das nossas parcas e difusas capacidades de expressão, ousaremos questionar as venerandas sumidades com duas ou três perguntas acerca do catecismo - algo ao nível da catequese da nossa adolescência. Ou então, ainda recorrendo às nossas toscas palavras, elaboraremos de forma grosseira uma ou duas questões relacionadas com a história da Igreja; ou outra hipótese, tentando não abusar do imerecido beneplácito para connosco, colocaremos, sem qualquer retoque polido pelo verniz da douta sofisticação, uma singela demanda acerca de um marco histórico da Idade Média.
 
- Oh, meu Deus! Mas não é que tais eruditos desconhecem aquilo que nós – os incultos e atrasados - na nossa infância já tínhamos como adquirido?! Que ignoram por completo o mais básico fundamento do catecismo?! Que são incapazes de destrinçar entre uma simples ideia relacionada com a fé e uma matéria do foro da história? Que não dominam sequer os mais imberbes acontecimentos dos Evangelhos? Que colocam palavras ditas por Pilatos na boca de Jesus?! Que trocam Pedro por Paulo, mesmo quando o sujeito em causa é Judas Iscariotes? Ou que – mais grave - assumem poses de um alto gabarito e de uma sobranceria intelectual, quais detetives do Iluminismo, sobre aspetos supostamente escondidos da incauta massa popular, que qualquer edição bíblica contém?! Estes catedráticos do livre-pensamento chegam ao cúmulo de ser bíblicos em matéria histórica e históricos em matérias de fé! Como se a explicação sobre a Santíssima Trindade radicasse numa pedra solta da Muralha de Adriano! Tais vendilhões da sabedoria seriam mais apreciados por nós se ao menos dominassem os princípios fundamentais do cristianismo e discernissem os principais fenómenos históricos da – afinal - sua própria civilização.
 
 
 
 
Invocar superioridade intelectual e moral em temáticas onde se aventuram como que em terra incógnita, é um comportamento, que apesar de merecer o epíteto de temerário, é igualmente capaz de aguentar o de infeliz e o de ridículo – além de ser desonesto por inteiro. A dura expressão “como um boi a olhar para um palácio” arroja à superfície da mente, e não será completamente desajustada nem sem sentido. “Mas um bovino não argumenta”, poderão retaliar com toda a justiça e propriedade; ao que responderei: – “se bem que é capaz de permanecer dias a fio sem emitir qualquer som”. “Com as devidas distâncias, reparem no caso de São Tomás, alcunhado como o boi mudo”. E a santidade sabe perfeitamente que o silêncio pode ser de ouro.
 
 
Em cristalino contraponto, os defensores da Igreja sempre conheceram extremamente bem os seus adversários. Alain de Lille, por exemplo, o autor de De fide catholica contra haereticos, nos seus veementes ataques aos cátaros e valdenses, aos judeus e muçulmanos no século XII, refutou-os de forma brilhante no terreno das suas teses, ideias e valores. Claro que para tal é necessário esforço e entrega – e nestes tempos que vão correndo só se tem coragem para pedir e reclamar, e nunca para oferecer (mas a isso não se chama coragem, mas cobardia). Que não restem dúvidas: oferecer um combate cerrado é uma forma quase sublime de homenagem; um reconhecimento de capacidade e de humanidade no outro - inclusive quando os confrontos aparentam a agressividade dos campos de batalha e os fiéis parecem vestidos com uma armadura agressiva e ofuscante – dir-se-ia intolerável! Permitam que vos assegure: os cristãos jamais perderiam tempo com monstros ou bestas. Ao invés, encaram a disputa como um arrufo fraterno entre irmãos – embora sobre pressupostos de assumida importância. São implacáveis para com os pecados e compreensivos para com os pecadores.
 
 
Neste momento, gostaríamos de invocar as palavras de consolo do abade Foulques de Deuil ao recém castrado Abelardo, que por muitos clérigos seus contemporâneos era tido como herético: “faz pouco tempo, a glória deste mundo te cumulava de seus favores e não se imaginava mais que estivesses exposto aos reveses da sorte. Roma te enviava seus filhos para os instruíres, e ela, que outrora inculcava em seus ouvintes o conhecimento de todas as ciências, mostrava, enviando-te seus escolares, que tua sabedoria era superior à dela. Nem a distância, nem a altura das montanhas, nem a profundidade dos vales, nem as estradas repletas de perigos e infestadas de bandoleiros nos impediam de se apressarem em ir até a ti. A multidão dos jovens ingleses não temia nem a travessia do mar, nem suas terríveis tempestades; a despeito de todo o perigo, desde que ela ouvia o teu nome pronunciado, acorria até a ti. A longínqua Bretanha te enviava seus filhos para os educares; os angevinos te prestavam homenagem com os deles. Os poitevinos, os gascões e os espanhóis, a Normandia, a Flandres, o alemão, o suábio não cessavam de proclamar e louvar o poderio do teu espírito. Não digo nada de todos os habitantes da cidade de Paris e das partes mais distantes, como mais próximas, da França, que estavam sedentas de teu ensino como se não houvesse ciência que não fosse possível aprender contigo”.
 
Pode vir como uma surpresa, mas o ensino era tido em muita boa conta nos tempos medievais. Tem-se o péssimo hábito de abusar duma ideia feita à pressa acerca deste ponto, como se rebolando variadas vezes em cima do falso ele se tornaria verdadeiro. Obviamente, que comparando com os dias atuais, o ensino, além de estar extremamente longe do regime de obrigatoriedade, não se encontrava massificado. Partes consideráveis da população não podiam despender do tempo, dar-se ao luxo de abandonar a família, de sonhar sequer em esquecer os deveres para com a comunidade – estava-se num era do cumprimento do dever e do respeito das obrigações! Mas não se pode esquecer que incontáveis indivíduos se acotovelavam em frente ao Mestre, colados às suas sábias palavras – em muitas ocasiões, desconfortavelmente sentados nas frias e ásperas ruas, enquanto as pernas descansavam das muitas dezenas de quilómetros percorridos e com os estômagos a insistir em emitir ruídos estranhos com a fome de dias. E que marcantes professores a Idade Média (e os seus alvores) nos deixou: Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Santo Anselmo, São Vítor, São Bento, São Boaventura, São Bernardo, São Alcuíno, o já referido Alain de Lille, entre muitos outros - além do infeliz Abelardo. Universitas, a universidade, orgulho tremendo dos pais dos nossos jovens e de onde jorram fornadas de mentes livres e seculares a torto e a direito, nasceu nestes séculos católicos – o Papa Inocêncio III é o fundador da prestigiadíssima Universidade de Paris no século XIII.
 
Paulo Pinto