domingo, 24 de maio de 2015

Chesterton - Bases Para A Acção Política




Em 1901 Chesterton foi convidado para escrever no Daily News. Uma condição apenas lhe foi
imposta: nada escrever sobre religião ou sobre política. Chesterton responderia: Se não posso escrever sobre religião e política, que mais há sobre que escrever? Na mente deste mosqueteiro, a importância primeva da vida residia na relação do homem com Deus e na relação do homem com os outros homens – eis a sua definição lata de religião e política. Chesterton não escreveu sobre política para obter notoriedade; de facto escreveu sobre este assunto contra a vontade de sua mulher e dos seus familiares e amigos, que lhe reconheciam talento literário e lhe auguravam uma carreira nas artes e nas letras. Mas escrever sobre política a partir de uma posição minoritária e praticamente herética - numa Inglaterra de Belle Époque que acreditava no imperialismo inglês, no liberalismo ad nauseum, na supremacia do protestantismo whig, no seu capitalismo baseado no comércio (um país de mercadores, nas palavras de Napoleão), na finança plutocrática sem escrúpulos, na acumulação de capital como sinal de virtude, no progresso virtuoso, no socialismo fabiano, na eugenia darwinista – seria como comprar um bilhete para a terra do nunca.

Chesterton comprou. E foi da terra do nunca que falou…e fala. Pelo menos assim o dizem os que não acreditam na exequibilidade prática da sua teoria económica que assenta na distribuição da propriedade, na garantia de que todo o homem seja proprietário (como garantia de liberdade e independência), na política de proximidade, na profusão da pequena empresa, no comércio justo e determinado localmente, numa estrutura accionista dispersa e conhecida, na garantia da propriedade com distribuição do poder pelo maior número de homens de uma nação, numa organização do Estado com limites de acção bem definidos. Numa palavra, a subsidiariedade ou doutrina social da Igreja. Entendida como a defesa dos pobres, no sentido em que todo o homem pobre tem o direito à propriedade. Entendida como um limite à acumulação de riqueza, sobretudo de uma riqueza que não tem tradução na propriedade física, mas apenas tem expressão económico-financeira; a riqueza virtual que é hoje a forma predominante de riqueza. E também fala da terra do nunca para aqueles que compreendem a filosofia como a análise de sistemas para abordar (ou será amputar ou distorcer?) a realidade. Um homem para quem a política nunca deixa de ser uma filosofia política, entendida como dialética de teoria e prática.
 

Tal como com os Papas da Igreja Católica, ninguém lhe deu crédito. Porque não convém a quem detém o poder, porque a globalização o impede, porque os Estados nacionais se tornaram reféns de um poder económico que se expressa através de legislação oriunda de instâncias supra-nacionais. Por isso este ideal, simultaneamente o direito à propriedade, a contenção na acumulação de riqueza e os limites estritos à acção do Estado, foi achado difícil e não foi tentado. Veremos até quando se aguenta o actual modelo económico, em larga medida psicológico e virtual, mas sempre opressivo. Também não lhe dão crédito estes discípulos de Édipo, professores de filosofia das nossas faculdades, normalizados pela Reforma e, como ela, em negação dialética.

 



Este Mundo Importa
 


Mas voltemos ao Chesterton político. Chesterton participa activamente na política, na ideia política, na análise política, na crítica, na elaboração política. A sua posição tem uma raiz no evangelho. Algo subtil, por vezes completamente apreendido de forma equivocada, pelos católicos em primeiro lugar. Em nenhum lado Deus, Cristo, a Bíblia, etc., afirmam que este mundo é mau ou que a carne (matéria corporal) é má. Em nenhum! Muito pelo contrário: este mundo é sempre descrito como uma obra sublime e existe um livro inteiro que relata o quanto é bela e sublime a mulher. Ao referir que o mundo e a carne são inimigos do espírito, a Escritura apenas sublinha que o poder deste mundo emana das relações públicas ou mundanismo e que o prazer como finalidade é um erro e causa dependência. Mundo e carne são atitudes, comportamentos, não são entendidos como a matéria que essas palavras igualmente expressam. O mundo material é bom, tal como a mulher é boa para o homem e vice-versa.

Esta distinção é muito importante. Por outro lado, também existe um outro mundo mais sublime do que este mas que não o dispensa de modo algum. Teremos então o conceito de mundanidade-outra ou cidade dos homens e mundanidade-santa ou cidade de Deus, como dizia Agostinho. Tendemos a ver a cidade de Deus como aparte deste mundo, e é; mas também se encontra nele igualmente presente. Tendemos a ver a cidade dos homens como condenada, um vale de lágrimas destinado a perecer pelo fogo, uma instância onde não se encontra a justiça. Sim…e não.

 

O cristianismo é a mais materialista das religiões.

 

O Deus Eterno entrou no tempo e na matéria. A Criação, a Encarnação, a Ressurreição, não só evidenciam que o Espírito penetra na matéria como igualmente que o corpo humano é imortal. Esta convicção descarta qualquer religião puramente materialista, como o marxismo, ou puramente espiritualista, como a gnose. Cristo é o centro. Então o cristão deve odiar o mundo na sua mundanidade, na sua tendência mítica e idolátrica, nas suas relações para obter benefícios, na sua imagem e representação. E, no entanto, deve igualmente amá-lo, mesmo na sua fealdade, porque só amando-o pode contribuir para o mudar. Só assim será o sal da terra. Só assim os cristãos estabelecerão o Reino de Cristo na Terra. Tal como o sal, sempre em minoria, sempre com sabor intenso e por vezes insuportável, sempre em risco de desaparecimento ou de dissolução. E, contudo, só assim mudarão o sabor da comida.
 

 Este é o princípio da acção política.
 

Embora não tendo ilusões sobre a verdadeira natureza da política, que tem mais que ver com poder, sedução, ocultação e mentira do que com justiça e verdade, o cristão deve aceitar a missão de entrar na política, precisamente porque tem a possibilidade de ser um exemplo, pagando um preço; é isso que significa que para ganhar este mundo ele o deve perder. Se for apenas mais um, servindo-se em vez de servir, deixa de ser cristão, no sentido em que deixa de fazer a vontade de Cristo, mas hereticamente, segue apenas a sua.

O falhanço na sua projecção social não o deve deprimir ou fazer desistir. Na verdade, “Nada falha como o sucesso” – nenhuma outra instituição, como a Igreja, falhou tantas vezes e de tantos modos, por vezes em risco de extinção, e nenhuma outra teve tanto sucesso. E o mesmo se pode dizer de Cristo.

Portanto, o cristão deve participar na política, desde logo votando.

 


As Ciclopias

A concepção do real como “aquilo que está para vir” cindiu o homem com o mundo real, com a realidade do existir, e fundou a sua esperança no progresso, no que está para vir, no porvir: o misticismo anti-racionalista, deísta ou freudiano e o materialismo lógico pelo estabelecimento de um reino messiânico na Terra, totalmente desvinculado de uma realidade-outra. O cego místico Tirésius e o racionalista Édipo; o pessimista e o optimista; as partículas aprisionadas de Eckhart e o nominalismo de Ockham; o deísmo de Robespierre e a deusa Razão dos fanáticos de Hébert; romantismo e realismo; Freud e Marx; Espinosa/Goethe e Kant/Wittgenstein.
 

Esta dialética fechada, pendular, em negação e retorno ao longo da História, efectua a sua síntese: Édipo com o cajado hermético, monstrum horrendum cui lumen ademptum – uma manifestação precoce de Hegel. A sociedade racionalista e cientifista, com os seus horóscopos e astrologias, com os seus espíritos e vampiros, com as suas medicinas alternativas e o seu tarot, com o seu vegetarianismo e adoração dos animais; o socialismo esotérico e gnóstico nazi com a sua Thüle e o socialismo marxista com a sua Liga dos Justos; o liberalismo materialista e o socialismo liberal; a democracia e as sociedades secretas; os direitos humanos e os serviços secretos; a sociedade “aberta” de Popper onde vale tudo, onde a verdade objectiva não existe, onde nada tem valor absoluto, nem a própria vida. “É proibido proibir”, a menos que seja o novo poder revolucionário a proibir: “Há dois tipos de pessoas: aqueles que sabem que usam dogmas e aqueles que aceitam dogmas sem saber.” “O moderno adepto das novas ideias não é inconstante, mas fixo” (é um conservador).
 

Um estado mental que tudo relativiza destrói a própria possibilidade de revolta e de luta pela justiça social, na medida em que o relativismo moral destrói a própria distinção moral entre oprimido e opressor. Só o retorno à objectividade moral pode permitir o radicalismo político; só o restabelecer do mundo do ser pode parar o mundo do devir: “Devemos amar este mundo mesmo para o mudar. Também se disse que devemos amar um outro mundo (real ou utópico) de forma a que tenhamos objectivos para a mudança do nosso…O progresso tem que significar que estamos continuamente a mudar o mundo para o adaptar à nossa visão e não que estamos continuamente a mudar de visão.” Como se para correr os 110 m barreiras estivéssemos sempre a colocar a meta para trás; faria sentido continuar a chamá-los de 110 m? Que sentido tem um progresso sem regras, sem um objectivo?
 

R. H. S. Crossman no seu livro Plato today afirma: “a verdadeira democracia não é platónica porque ela emana da própria ideia de personalidade; o verdadeiro democrata sabe que o mundo ainda tem que ser construído como democrático, portanto ele deve ser considerado pagão, apesar das suas instituições democráticas e das suas igrejas cristãs.” Quer a democracia quer o cristianismo são afirmações incríveis: “Contra a ordem existente e aqueles que a pretendem manter, elas apregoam uma impossibilidade e lutam por a tornar real.”

As ciclopias e respectivas sínteses não deixam de ser ciclopias, nunca são estereopsias. Só a percepção de que este mundo importa e não está separado em absoluto do outro, mas que se encontra interpenetrado e com leis semelhantes, com um tipo análogo de racionalidade e moral, com o mesmo tipo de verdade objectiva. Por isso mesmo a atitude epistemológica certa nunca pode ser a adopção de um sistema filosófico, por mais cativante ou “artístico”, porque todos eles são sempre baseados em premissas e um pouco de lógica, tomando a actividade racional de forma tão estreita, que exclui a maioria das operações intelectuais humanas e a maioria dos homens no seu proceder diário, incluindo os inventores e useiros de tais sistemas. As ciclopias são modas que se repetem ao longo da História e são as grandes inimigas de uma coisa completamente nova: a Boa Nova, o Evangelho.

 


“A vida ou é uma luta apaixonante ou é uma trégua miserável.”


 

A mensagem do evangelho afirma as duas mundanidades, equilibrando o aristotelo-tomismo com o agostinismo. A realidade aproxima-se sempre com dois olhos. Uma ciclopia como a teologia da libertação (e o marxismo) transforma o reino de Cristo num reino deste mundo, transgredindo as palavras do próprio Cristo. Um tipo de cristianismo que assente a sua acção na transformação das estruturas sociais sem transformar o indivíduo, ignora a maior conquista que o homem faz à luz da graça: a do pecado em si próprio. Uma espiritualidade puramente individualista e virada para o outro mundo também é uma ciclopia, na medida em que ignora ostensivamente o facto de que o homem é um animal social, que é formado pelas sociedades onde aparece desde a concepção, a família e a pátria, que a sanidade destas ajudam à sanidade daquele. A Igreja não ensina a ciclopia; ela prega a ânsia da mundanidade-santa de S. Francisco no desejo pela pobreza voluntária, e o direito à propriedade de São Tomás, a mundanidade-outra, pela necessidade de todo o homem possuir algo para se encontrar numa situação de liberdade. O catolicismo prega a insignificância deste mundo em face do mundo que está para vir e a absoluta necessidade e importância deste mundo em face do mundo que está para vir. O “negócio” de Cristo é simultaneamente aqui e na eternidade. Não se jura pela Terra, porque ela é o escabelo (banquinho) dos Seus pés.
 

Em que medida é que esta noção teológica influencia a acção política?
 

Para um protestante, a Salvação é assunto privado, sem intermediários, pessoal. A Igreja é apenas uma associação de crentes, cuja salvação é independente para cada um e independente do corpo da Igreja. Não existe essa coisa de “corpo místico”. É uma concepção quase gnóstica. Esta concepção protestante baseia-se no platonismo de Santo Agostinho, no triunfo da sua soteriologia sobre a sua eclesiologia. A soteriologia é o estudo da salvação; a eclesiologia o papel da Igreja. Agostinho sublinha a natureza da realidade como algo que é para além e outra, relativamente a este mundo. A união com a Igreja leva à graça de Deus que é obra unicamente de Deus (daí a ideia da indiferença das obras dos homens e, como consequência, a via aberta para o determinismo). Ao homem cabe buscar a santidade na Igreja (daí a ideia da sola fide, a fé certa). Se a realidade não está neste mundo, que sentido faz a política secular? A menos que seja uma forma de poder, não fará qualquer sentido, uma vez que nunca será uma forma de justiça já que a verdade não se encontra neste mundo. Está aqui exemplificada a falta de entusiasmo de muitos teólogos pela política, incluindo alguns convertidos ao catolicismo, vindos do protestantismo, como Newman. E explica a falta de visão espiritual daqueles que se ocupam da política neste mundo.

 

Esta noção de que o mundo material é mau ou irreal e de que a verdade não se encontra disponível na matéria é rejeitada pela eclesiologia católica, para quem a Igreja é o corpo de Cristo e a contínua obra de Jesus Cristo na Terra, mesmo que composta de pecadores, tal como um corpo com partes menos decorosas. A salvação individual não existe “porque aqueles que tiverem encaminhado a muitos é que brilharão” e sem obras não existe salvação, mesmo que em última análise ela dependa da Graça. Mas a Graça não é absurda nem caprichosa, ela leva em conta as obras.

 

Chesterton pelo contrário não veio para a Igreja Católica a partir do protestantismo, mas do liberalismo (o partido liberal incluía os socialistas no tempo de Chesterton) e do ateísmo (segundo Pearce, Chesterton foi mesmo fabiano). O primeiro movimento de Chesterton no caminho para a religião foi mesmo o de rejeitar o platonismo. Para Chesterton, a existência era maravilhosa e jamais se poderia ignorar ou menosprezar este mundo – isso seria um bilhete para a loucura. Este mundo não é uma ilusão, é maravilhoso. Este lado aristotélico em Chesterton ligou-o à política e à sua crença de que é possível agir sobre o curso dos acontecimentos neste mundo. A crença numa filiação comum de todos os homens sem excepção.

Chesterton era aristotélico no sentido de que partilhava esta mundanidade-outra; e tomista no sentido em que no seu amor por esta vida nunca ignorou a vida além desta, que ilumina o presente com a sua luz, simultaneamente pálido em face dessa luz: “eu nunca perdi a noção de que esta é a minha vida real; o prenúncio de uma vida ainda mais real, uma experiência perdida na terra dos vivos.” E Newman abandonaria o puro platonismo agostiniano para abrir a porta ao aristotelismo, num movimento inverso, i.e., a realidade do outro mundo interpenetra e é constitutiva da realidade deste: “a presença de Cristo não é uma coisa à distância, nem Cristo é separado de nós como o sol, iluminando-nos mas mantendo a distância; pelo contrário, encontramo-nos cercados por uma atmosfera e imersos num meio no qual o amor e a luz nos tocam por todos os lados.” O aristotelismo foi o primeiro movimento de retorno do cepticismo em Chesterton: aproximar a realidade primeiro pelo que se vê e só a partir daqui inferir sobre o que não se vê. Uma vez na doutrina da Criação, a mente de Chesterton é conduzida à fraternidade humana na filiação divina, à comunhão dos santos, ao corpo místico de Cristo. Resumindo: ateísmo → aristotelismo → cristianismo tomista → eclesiologia ˃ soteriologia. Embora Newman fosse muito mais neo-platonista na sua origem, em face da sua vinda do anglicanismo, ele evoluiu para uma posição final em que a eclesiologia também superava a soteriologia individual.

 

Este modo original inglês de ver o catolicismo, não escolástico, mas aristotélico-tomista (aproximar primeiro a realidade deste mundo pelo que se vê e só depois fazer o movimento para o que não se vê), com ênfase na epistemologia da criança e na convergência de probabilidades, no sentido ilativo, tornou Newman um herege na Inglaterra da década de 1840, mas por outro lado um suspeito entre os católicos, pagando um preço como pioneiro, que o catolicismo mais tarde não exigiria a Chesterton : “Sendo um exemplo sublime de que a fé pode crescer em qualquer solo, e de que uma mente brilhante pode ver a Igreja de qualquer ângulo, ele causou aquela estranha impressão nos da sua fé católica de ser um estranho,  demasiado estranho para ser considerado imediatamente um par.” Depois deste constatar de que Newman foi sempre mantido “à vista” por Manning, Chesterton elogia a sua mente prodigiosa: “As aulas de Newman sobre O Estado Actual dos Católicos, uma resposta à onda de anti-papismo dos anos de 1850, foram dadas praticamente contra uma multidão em fúria. Havia algo maior do que o humor, existia o próprio divertimento, quando na primeira aula sobre a Constituição Britânica, Newman a explicou como se se estivesse a dirigir a um congresso de russos.”
 

Chesterton e Newman ou a base de acção política. O realismo metafísico, um processo tipicamente inglês: a noção de que este mundo é real e a percepção da existência de uma realidade-outra e não de uma outra realidade.

 

 

António Campos

 
 Para este texto citam-se como fontes:



1- Donald Attwater, Modern Christian Revolutionaries. The Devin-Adair Company, NY, 1947, cap. II: G K Chesterton, by F. A. Lea.

2 - David Paul Deavel, An Odd Couple. A First Glance to Chesterton and Newman. Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, vol 10, 1, 2007, pp. 116-135 | 10.1353/log.2007.0003.

3 – Sheridan Gilley, Chesterton's Politics. The Chesterton Review, 21 (1/2):27-47 (1995).

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