domingo, 6 de setembro de 2015

Socialismo: Uma Teologia formal




"Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana.”



A tese de que o socialismo é uma religião mítica assenta na definição de mito: mythos, conto, uma
elaboração imaginativa da mente que ilustra e tenta explicar a realidade. O homem encontra por si, uma criação artística, imaginativa, que justifique a realidade que constata. Esta elaboração não assenta em prova testemunhal nem em documentos históricos; é uma construção da mente.

Os meus teóricos favoritos do marxismo são Feürbach e Ernst Blöch. Embora ideias tenham consequências, existe um aspecto positivo no ateísmo marxista: o reconhecimento da necessidade de uma moral e a chamada dos crentes a uma vida mais consentânea com a sua crença. O ateísmo impede a queda na superstição e obriga o intelecto simultaneamente a uma disciplina e a um despojamento material. É uma ironia. Feürbach continua e aprofunda o conceito de alienação e consciência infeliz de Hegel. Mas a mestria de Feuerbach inclui a reapropriação como epílogo da alienação: “Quanto mais Deus é subjectivo, mais o homem se aliena dessa subjectividade.”1


Se não existe nenhuma realidade fora do alcance da mente humana, como surgiu Deus? O homem fabrica inconscientemente Deus e depois quer que ele seja familiar. A razão faz o homem ver a natureza imanente da religião; a religião faz o homem ver necessidades insuspeitas pela razão – “O coração da humanidade é a religião.” Religião e coração seriam sinónimos. É um antropocentrismo; uma religião centrada no homem. Para Feuerbach o erro do cristianismo é o Deus-pessoa, o triunfo da subjectividade. Em seu lugar deveria interpretar-se a infinidade da encarnação do logos. Feuerbach não acreditava na encarnação num único indivíduo porque tal “deveria tornar invisíveis todas as luzes da História, todos os luminares da Igreja, como o sol torna invisíveis as estrelas.” Deus é tão avassalador que comparado com ele nada vale.


Não é em Cristo mas em cada indivíduo que se encarna o infinito no finito. A lei provoca uma cisão interior no homem pecador: “A lei que me exorta ao que devo ser lança-me cruamente na face exactamente aquilo que não sou.” Como diria Blöch mais tarde, o mistério do Deus absconditus resume-se ao homem que se esconde atrás de Deus – o absconditus est homo.
“De que modo o homem se resgata da pena da consciência do pecado, do tormento do sentido de nulidade? De que modo arranca ao pecado o seu aguilhão mortal?”1

A resposta de Feuerbach é kantiana: Cristo é a lei humana superior, a encarnação simbólica da suma moralidade. Mas para Feuerbach Cristo não representa o ideal moral encarnado da razão humana; ele representa o amor ideal que anula a lei. O homem com a “construção” de Cristo pretende dar à sua natureza uma consolação maior do que aquela proporcionada pela simples razão. Cristo personifica o mais intenso desejo humano: o de ver Deus. Nele, Deus torna-se homem e o homem Deus. É a união entre o finito e o infinito. Mas esta união não é sustentada pela razão, mas pela imaginação e pelo coração. Cristo corresponde não à vontade consciente, mas ao desejo inconsciente, é a tomada da consciência de si por parte da humanidade. 




Encontra-se subjacente a ideia de que Cristo foi inventado por uma comunidade que não teve consciência dessa operação:
“Deus é esse livre desabafo do coração, essa dor de uma alma alienada, esse segredo expresso.” A oração expressa esse desejo humano de que Deus não seja indiferente ao homem. A concretude da encarnação requere-a o homem e todo o ardor iconoclasta se opõe à essência da encarnação e da religião.

Em Hegel, tudo volta a ser espírito após a materialização (não o Espírito Santo, Heiliger Geist, mas apenas Geist, a mente colectiva, a alma da colmeia, essa coisa pagã - nunca cometer este erro decisivo ao interpretar Hegel); em Feürbach tudo nunca deixou de ser humano.
A importância conferida a Cristo como Deus-homem exprime o desejo de que as propriedades divinas sejam atribuídas aos homens. Os predicados de Deus tornam-se mais significativos do que Deus – a essência da religião é a imagem.


O sofrimento de Cristo é uma imagem e o seu choro uma ostentação – uma espécie de actor a desempenhar um papel. Os cristãos teriam assim elaborado uma repugnante religião do sofrimento. Feürbach ignora a teologia da cruz e o protesto existencialista de Job.


"Cristo é apóstolo e não origem do amor, o seu objectivo é a união da natureza humana. A razão tem compaixão de tudo, abraça tudo, é o amor do universo por si mesmo" - neste ponto a natureza mítica da construção de Feürbach é muito aparente; Cristo não se apresentou a si próprio como uma espécie de hippie: "Eu não vim trazer a paz, mas a espada". Se Cristo é, como disse de Si, a Verdade, a verdade só pode dividir aqueles que possuem livre arbítrio.
A fé, fazendo apelo a Cristo e fazendo distinção entre homens, seria então egoísta – “a fé é o contrário do amor.” A consciência do limite humano, a sensibilidade individual e o sentimento de culpa tinham exigido uma relação pessoal, mas Feuerbach termina em tons kantianos: a exaltação da razão e a busca da virtude pela virtude. Feuerbach funda uma crença religiosa baseada ela própria na acusação que aponta ao cristianismo: o antropocentrismo e a mitologia. Chega a uma teologia antropomórfica; teologia é antropologia.


Deus é o reflexo da essência humana projectada para fora e Cristo é a reapropriação dessa essência alienada. A encarnação representa a superação da alteridade de Deus. Deus e o homem são um só. Existe uma beleza perversa nesta elaboração; Feuerbach, como Nietzsche ou Kafka, é um saltimbanco da escrita. Aliás, como Chesterton, num sentido diverso.

Marx, num trocadilho sobre o significado em alemão do nome feuerbach, diria que alguém que quisesse fazer filosofia consistente primeiro teria que passar pelo regato ardente do pensamento de Feürbach.

O que Feürbach não explica são os motivos: Porque o homem se projecta em Deus? Por necessidade ou por doença? Cristo limitou-se a espelhar o que já sabíamos ou levou-nos para outros patamares? Outra dificuldade seria uma certa necessidade patológica do homem projectar de si um sofrimento extremo…qual a necessidade disto? Afinal o homem não aspira ao prazer e ao conforto? Que sentido faz um ideal de sofrimento? Sobretudo quando o próprio indica que esse sofrimento nada tem que ver com a justiça política ou social. Não é precisamente esta ânsia de justiça política e social que tem acompanhado o homem durante a sua caminhada pela História e que é o suporte existencial do marxismo? 
Não basta explicar o “como”; é necessário explicar o “porquê”! Que sentido faz um Deus que por um momento vacila e parece ateu? Como pode uma projecção defeituosa proteger o homem dos seus defeitos? Pelo contrário, parece fixá-los para a posteridade. Como encarar o Deus que não racha a cana fendida, que não quer a revolução social – não é o espírito de revolta parte do homem? E como pôde o povo judeu projectar de si mesmo uma imagem ideal que é herética e insultuosa? Um arquétipo que incita ao canibalismo e à libação do sangue, cuja genealogia inclui mulheres, algumas delas prostitutas…Que exalta os mais desprezíveis na Antiguidade, as mulheres e as crianças! Que inclui marginais e gentios…O socialismo é uma mitologia, mas uma mitologia elaborada a partir de um ambiente já cristão – é uma mitologia que é uma heresia. Haeresis, escolha. Bela como as mitologias; desequilibrada como as heresias.





Marx


Se Feuerbach fez uma psicologia da religião cristã, uma análise psicológica a posteriori, ao estilo que esse fantástico (e desgraçado) saltimbanco da escrita, Nietzsche, faria de Jesus Cristo, ora identificando-se ora alienando-se, de uma suposta figura de O Idiota de Dostoiévski, é Marx quem adopta para o seu socialismo não o conteúdo, mas a forma do cristianismo. O socialismo beneficia do antropocentrismo mítico de Feürbach para construir a sua religião prometaica com Marx.


A posição dos marxistas perante Cristo e o cristianismo divide-se em duas correntes principais:2

- a corrente racionalista ou cientificista, que oscila entre o silêncio, o escárnio ou a crítica radical. É a mesma posição daqueles que hostilizaram Cristo na Paixão.

- a corrente especulativa ou utópica, em que Cristo é interpretado como um líder revolucionário, a cristologia como um movimento prometaico, a verdade testemunhal e histórica é ignorada ou desacreditada. Tudo se resume a um simbolismo – é uma gnose. Erich Frömm, mas especialmente a genialidade de Ernst Blöch são os seus expoentes.


Em Marx podemos ver uma cristologia explícita nas primeiras obras (Questão Judaica, Introdução Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Manuscritos Económico-filosóficos), em que Cristo é apontado como um ideal ou como um modelo moral, sempre despido da sua realidade histórica ou testemunhal e deidade:


“”A própria religião nos ensina que o Ideal ao qual todos aspiram se sacrificou pela humanidade.” (…) “…o nosso coração, a nossa razão, a história e a palavra de Cristo gritam-nos, pois, com uma voz alta e persuasiva que a união com ele é necessária e incondicionada, que sem ele não poderíamos atingir o nosso fim, seríamos rejeitados por Deus e só ele pode remir-nos.” (…) “Os povos que não conheceram o ensinamento de Cristo têm uma inquietude interior, um temor da ira dos seus deuses, a persuasão íntima da reprovação, esperando em vão expiar as próprias culpas através dos sacrifícios.” (…) “Só na união com Cristo podemos amar a Deus que antes nos parecia um patrão irado e agora nos parece um pai misericordioso.”





Este Cristo mediador entre o homem e o ideal do homem, entre o coração corrupto e o desejo pelo bem, entre a voz enganadora do pecado e a admiração da virtude, entre o poder adulador da mentira e o desejo pela verdade, desaparece a partir dos Manuscritos Económico-filosóficos e da Ideologia Alemã, “porque para o homem socialista toda a chamada história universal mais não é do que a geração do homem a partir do trabalho humano, o devir da natureza pelo homem; assim ele tem a prova evidente, irresistível, do seu nascimento em-si mesmo, do seu processo de origem. Resulta praticamente impossível a questão de um ente estranho, de um ente acima da natureza e do homem; questão que implica a inessencialidade da natureza e do homem.” 

Esta ideia corresponde milimetricamente à ideia expressa por Kant e marcaria definitivamente a filosofia alemã, como veremos. É uma negação, um protesto. Na Ideologia Alemã, Sagrada Família, Teses Sobre Feürbach e Manifesto, a religião é abertamente criticada como ideologia. Nesta Weltanschauung marxista mais amadurecida deixa de haver lugar para um mediador na medida em que a consciência de si depende da tríade natureza-homem-trabalho.


Esta segunda fase marca a mais interessante cristologia implícita e autonomiza o socialismo como uma religião. A estrutura do pensamento marxista é religioso – sujeito revolucionário e libertador figurado no proletariado; a alienação ou separação da sociedade, figurada na economia capitalista. O modelo epistemológico é uma projecção do cristianismo, sempre subentendido. A função alienante e a função libertadora. É a estrutura e não o conteúdo – é um formalismo cristão:


“O amor humano universal é tido por muitos como a realização do comunismo. No princípio a coisa pode caminhar. Mas quando a experiência ensina que este amor não se tornou eficaz em 1800 anos, que ele não pode mudar os relacionamentos sociais nem fundar o seu reino, segue manifestamente que este amor que não pôde vencer o ódio não tem a força necessária para as reformas sociais. Este amor enfraquece o homem.” (…) “Os princípios sociais do cristianismo pregam a vileza, o desprezo por si mesmo, a humilhação, a humildade, todas as qualidades da gentalha. O proletariado não quer deixar tratar-se por gentalha, tem mais necessidade da sua consciência de si, do seu orgulho, do que de pão.” - É uma primeira referência à teoria do quanto pior melhor que, como veremos, é uma soteriologia.


Para Marx, o cristianismo era a religião do capitalismo, das suas condições de miséria e de opressão: “ O cristianismo é a religião específica do capital. Em ambas não vale senão o homem. Para um, tudo depende se ele tem fé; para outro, se ele tem crédito. O cristianismo com o culto do homem abstracto, especialmente no desenvolvimento burguês, deísmo, etc., divide-se em sistema monetário essencialmente católico e em sistema creditício essencialmente protestante.” 

Claro que Marx, oriundo do mundo judaico, recém aderido ao protestantismo não valoriza, ou não lhe convém valorizar, a perspectiva católica das obras acima da fé.


A função medianeira de salvação persiste no esquema de Marx; apenas é transferida de Cristo para o proletariado, de Deus para o Estado.
“O Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem. Como Cristo é o mediador ao qual o homem atribui toda a própria divindade, assim o Estado é o mediador em que o homem transfere a própria negação do divino, toda a própria liberdade humana de preconceitos.”3


O dinheiro é o intermediário do homem no sistema capitalista, tornando-se, de meio em fim, no verdadeiro deus. A escravatura do homem torna-se máxima, ao constatar no dinheiro um poder independente. Existe então um paralelismo entre Cristo e o dinheiro, num ciclo de alienação-reapropriação dialética. Cristo representa sucessivamente, o homem perante Deus; Deus perante o homem; o homem perante o homem. O dinheiro representa o proletariado perante a propriedade privada; a propriedade privada perante o proletariado; o proletariado perante o proletariado – existe um paralelo mediação cristológica e mediação económica num processo de identificação dialético.





A soteriologia – o Cristo implícito


O proletariado não é apenas o mediador para a salvação do homem e da sociedade; ele é a vítima sacrificial sem a qual não existe processo de identificação. É decalque do Servo de Javé de Isaías.4 O proletariado representa o homem em sofrimento; é de uma total nulidade social, não tem títulos, não tem história. Padece um sofrimento universal. Vive numa alienação social radical, económica, política e humana. Este sofrimento deve ser profundo e autêntico, porque dele depende a tomada de consciência do proletariado da sua situação (a consciência de si) e a sua predisposição para a revolta social. Não deve haver qualquer negociação com o capitalismo para a melhoria das condições dos trabalhadores, porque o sofrimento é o bilhete para o resgate e para a vitória final. A alienação radical do proletariado é a conditio sine qua non para a revolução e a emancipação social do homem – é a doutrina do quanto pior melhor.


Escatologia e teodiceia

A teoria marxista da História forma a base da teodiceia: tudo se tornará pleno, bom, perfeito, na utopia pós-revolucionária, o comunismo. O domingo que ainda não foi criado como dizia Santo Agostinho. Mas como poderá o homem ser feliz se a morte persiste? O marxismo traz pouco conforto, mesmo no futuro, a um homem que vê o seu filho sofrer de cancro incurável. Que interesse pode ter um mundo futuro que não se encontra cheio de surpresas? Uma das razões por que a História é tão apaixonante é porque ela é cheia de surpresas. Como evitarão os homens do futuro o tédio se não existe nenhuma dialética de conflito por causa da absoluta igualdade? Estas foram as questões enfrentadas mais tarde, mas não resolvidas, por Ernst Blöch.






A natureza mítica


Existe nesta soteriologia um elemento espiritual ou filosófico de natureza mítica retirada dos clássicos: “Prometeu é o maior santo e mártir do calendário filosófico.”5
“A filosofia, enquanto uma gota de sangue ainda pulsar no seu coração absolutamente livre, dominador do universo, gritará sempre aos adversários com Epicuro: «Ímpio não é quem nega os deuses do vulgo, mas quem aplica aos deuses as opiniões do vulgo».”6

O socialismo assume com Marx uma dimensão verdadeiramente mitológica, de natureza prometaica, em que o Prometeu acorrentado de Ésquilo mantém, pela coragem do martírio, o seu orgulho, rebelião e blasfémia contra os deuses: “A declaração de Prometeu «eu francamente odeio todos os deuses» é a sua própria sentença contra todos os deuses celestes que não reconhecem como divindade suprema a autoconsciência humana.”7

Esse Prometeu acorrentado torna-se então o Prometeu “criador” dos homens e “construtor” do mundo. O Protágoras de Platão é assim a visão prenunciadora do marxismo como sujeito criador da História:

Este Prometeu oscila entre a dialética do Prometeu acorrentado de Ésquilo, em revolta contra os deuses e o Prometeu construtor do mundo do Protágoras – ambos figuração do proletariado sofredor que toma consciência de si pelo sofrimento extremo, se revolta e funda um mundo novo, uma utopia. É uma dialética hegeliana: sofrimento/alienação – revolta – retorno a si. Este esquema é uma kenosis bíblica apenas formal, na medida em que o sujeito não possui a liberdade de escolha – nenhum proletariado escolheria o pior para si mesmo e para os seus, tal como a evidência histórica demonstrou.


Na verdade o marxismo é uma imagem mais clara da filosofia alemã moderna: uma espécie de cristianismo formal, despido de conteúdo e de liberdade individual, que ficou eternamente preso na sexta-feira especulativa, nesse momento do tempo e da eternidade em que Cristo desceu aos infernos. A força humana não consegue mais.


Nele ecoa a recusa hebraica e a recusa muçulmana: “Jesus não é mais do que o filho de Maria, homem entre os homens.” Tal como a comuna, também o sionismo laico e a Umma se encontram paradas na sexta-feira especulativa.8


“Uma coisa como a Igreja Católica tem um sistema; isto é, uma coisa equilibra a outra. Um homem como Maomé ou Marx, ou do seu modo, Calvino, pensa que esse sistema é muito complexo e simplifica-o a uma única ideia…assim constrói um sistema muito desequilibrado com a sua ideia fixa.”9







António Campos


1 A Essência do Cristianismo, 1841.

2 Silvano Zucal, Cristo na Filosofia Contemporânea, vol. 1, Ed. Paulus, 2003.

3 A Questão Hebraica.

4 Is 52, 13-15 e Is 53, 1-12:

“Reparem: o meu servo prosperará; será exaltado! Tal como muitos ficaram pasmados ao vê-lo, sim, até as nações mais distantes e os seus governantes ficarão como que emudecidos na sua presença!
Porque verão aquilo que não lhes tinha sido dito anteriormente e compreenderão o que não lhes fora anunciado. Verão o meu servo tão desfigurado que dificilmente se perceberá que se trata de uma figura humana ali presente. Mas é assim que ele limpará muitas nações.”


5 Prefácio à sua tese de doutoramento, “A Diferença entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e de Epicuro”, de 1841.

6 Cadernos dos Trabalhos Preparatórios para uma História da Filosofia Epicurista, Estóica e Céptica.

7 op. cit.

8 «…Os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não, não há Deus." A sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: Pai, onde estás? Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém rege (...)." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se. O coração estalou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério, se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." (...) Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! (...) Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. O Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio anjo exterminador?»

(Jean Paul, Discurso do Cristo Morto, Desde o Cume do Mundo, Sobre a Não Existência de Deus, 1796).

9 Chesterton, On The Open Conspiracy, Come to Think of It.

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