domingo, 24 de maio de 2015

Chesterton - Bases Para A Acção Política




Em 1901 Chesterton foi convidado para escrever no Daily News. Uma condição apenas lhe foi
imposta: nada escrever sobre religião ou sobre política. Chesterton responderia: Se não posso escrever sobre religião e política, que mais há sobre que escrever? Na mente deste mosqueteiro, a importância primeva da vida residia na relação do homem com Deus e na relação do homem com os outros homens – eis a sua definição lata de religião e política. Chesterton não escreveu sobre política para obter notoriedade; de facto escreveu sobre este assunto contra a vontade de sua mulher e dos seus familiares e amigos, que lhe reconheciam talento literário e lhe auguravam uma carreira nas artes e nas letras. Mas escrever sobre política a partir de uma posição minoritária e praticamente herética - numa Inglaterra de Belle Époque que acreditava no imperialismo inglês, no liberalismo ad nauseum, na supremacia do protestantismo whig, no seu capitalismo baseado no comércio (um país de mercadores, nas palavras de Napoleão), na finança plutocrática sem escrúpulos, na acumulação de capital como sinal de virtude, no progresso virtuoso, no socialismo fabiano, na eugenia darwinista – seria como comprar um bilhete para a terra do nunca.

Chesterton comprou. E foi da terra do nunca que falou…e fala. Pelo menos assim o dizem os que não acreditam na exequibilidade prática da sua teoria económica que assenta na distribuição da propriedade, na garantia de que todo o homem seja proprietário (como garantia de liberdade e independência), na política de proximidade, na profusão da pequena empresa, no comércio justo e determinado localmente, numa estrutura accionista dispersa e conhecida, na garantia da propriedade com distribuição do poder pelo maior número de homens de uma nação, numa organização do Estado com limites de acção bem definidos. Numa palavra, a subsidiariedade ou doutrina social da Igreja. Entendida como a defesa dos pobres, no sentido em que todo o homem pobre tem o direito à propriedade. Entendida como um limite à acumulação de riqueza, sobretudo de uma riqueza que não tem tradução na propriedade física, mas apenas tem expressão económico-financeira; a riqueza virtual que é hoje a forma predominante de riqueza. E também fala da terra do nunca para aqueles que compreendem a filosofia como a análise de sistemas para abordar (ou será amputar ou distorcer?) a realidade. Um homem para quem a política nunca deixa de ser uma filosofia política, entendida como dialética de teoria e prática.
 

Tal como com os Papas da Igreja Católica, ninguém lhe deu crédito. Porque não convém a quem detém o poder, porque a globalização o impede, porque os Estados nacionais se tornaram reféns de um poder económico que se expressa através de legislação oriunda de instâncias supra-nacionais. Por isso este ideal, simultaneamente o direito à propriedade, a contenção na acumulação de riqueza e os limites estritos à acção do Estado, foi achado difícil e não foi tentado. Veremos até quando se aguenta o actual modelo económico, em larga medida psicológico e virtual, mas sempre opressivo. Também não lhe dão crédito estes discípulos de Édipo, professores de filosofia das nossas faculdades, normalizados pela Reforma e, como ela, em negação dialética.

 



Este Mundo Importa
 


Mas voltemos ao Chesterton político. Chesterton participa activamente na política, na ideia política, na análise política, na crítica, na elaboração política. A sua posição tem uma raiz no evangelho. Algo subtil, por vezes completamente apreendido de forma equivocada, pelos católicos em primeiro lugar. Em nenhum lado Deus, Cristo, a Bíblia, etc., afirmam que este mundo é mau ou que a carne (matéria corporal) é má. Em nenhum! Muito pelo contrário: este mundo é sempre descrito como uma obra sublime e existe um livro inteiro que relata o quanto é bela e sublime a mulher. Ao referir que o mundo e a carne são inimigos do espírito, a Escritura apenas sublinha que o poder deste mundo emana das relações públicas ou mundanismo e que o prazer como finalidade é um erro e causa dependência. Mundo e carne são atitudes, comportamentos, não são entendidos como a matéria que essas palavras igualmente expressam. O mundo material é bom, tal como a mulher é boa para o homem e vice-versa.

Esta distinção é muito importante. Por outro lado, também existe um outro mundo mais sublime do que este mas que não o dispensa de modo algum. Teremos então o conceito de mundanidade-outra ou cidade dos homens e mundanidade-santa ou cidade de Deus, como dizia Agostinho. Tendemos a ver a cidade de Deus como aparte deste mundo, e é; mas também se encontra nele igualmente presente. Tendemos a ver a cidade dos homens como condenada, um vale de lágrimas destinado a perecer pelo fogo, uma instância onde não se encontra a justiça. Sim…e não.

 

O cristianismo é a mais materialista das religiões.

 

O Deus Eterno entrou no tempo e na matéria. A Criação, a Encarnação, a Ressurreição, não só evidenciam que o Espírito penetra na matéria como igualmente que o corpo humano é imortal. Esta convicção descarta qualquer religião puramente materialista, como o marxismo, ou puramente espiritualista, como a gnose. Cristo é o centro. Então o cristão deve odiar o mundo na sua mundanidade, na sua tendência mítica e idolátrica, nas suas relações para obter benefícios, na sua imagem e representação. E, no entanto, deve igualmente amá-lo, mesmo na sua fealdade, porque só amando-o pode contribuir para o mudar. Só assim será o sal da terra. Só assim os cristãos estabelecerão o Reino de Cristo na Terra. Tal como o sal, sempre em minoria, sempre com sabor intenso e por vezes insuportável, sempre em risco de desaparecimento ou de dissolução. E, contudo, só assim mudarão o sabor da comida.
 

 Este é o princípio da acção política.
 

Embora não tendo ilusões sobre a verdadeira natureza da política, que tem mais que ver com poder, sedução, ocultação e mentira do que com justiça e verdade, o cristão deve aceitar a missão de entrar na política, precisamente porque tem a possibilidade de ser um exemplo, pagando um preço; é isso que significa que para ganhar este mundo ele o deve perder. Se for apenas mais um, servindo-se em vez de servir, deixa de ser cristão, no sentido em que deixa de fazer a vontade de Cristo, mas hereticamente, segue apenas a sua.

O falhanço na sua projecção social não o deve deprimir ou fazer desistir. Na verdade, “Nada falha como o sucesso” – nenhuma outra instituição, como a Igreja, falhou tantas vezes e de tantos modos, por vezes em risco de extinção, e nenhuma outra teve tanto sucesso. E o mesmo se pode dizer de Cristo.

Portanto, o cristão deve participar na política, desde logo votando.

 


As Ciclopias

A concepção do real como “aquilo que está para vir” cindiu o homem com o mundo real, com a realidade do existir, e fundou a sua esperança no progresso, no que está para vir, no porvir: o misticismo anti-racionalista, deísta ou freudiano e o materialismo lógico pelo estabelecimento de um reino messiânico na Terra, totalmente desvinculado de uma realidade-outra. O cego místico Tirésius e o racionalista Édipo; o pessimista e o optimista; as partículas aprisionadas de Eckhart e o nominalismo de Ockham; o deísmo de Robespierre e a deusa Razão dos fanáticos de Hébert; romantismo e realismo; Freud e Marx; Espinosa/Goethe e Kant/Wittgenstein.
 

Esta dialética fechada, pendular, em negação e retorno ao longo da História, efectua a sua síntese: Édipo com o cajado hermético, monstrum horrendum cui lumen ademptum – uma manifestação precoce de Hegel. A sociedade racionalista e cientifista, com os seus horóscopos e astrologias, com os seus espíritos e vampiros, com as suas medicinas alternativas e o seu tarot, com o seu vegetarianismo e adoração dos animais; o socialismo esotérico e gnóstico nazi com a sua Thüle e o socialismo marxista com a sua Liga dos Justos; o liberalismo materialista e o socialismo liberal; a democracia e as sociedades secretas; os direitos humanos e os serviços secretos; a sociedade “aberta” de Popper onde vale tudo, onde a verdade objectiva não existe, onde nada tem valor absoluto, nem a própria vida. “É proibido proibir”, a menos que seja o novo poder revolucionário a proibir: “Há dois tipos de pessoas: aqueles que sabem que usam dogmas e aqueles que aceitam dogmas sem saber.” “O moderno adepto das novas ideias não é inconstante, mas fixo” (é um conservador).
 

Um estado mental que tudo relativiza destrói a própria possibilidade de revolta e de luta pela justiça social, na medida em que o relativismo moral destrói a própria distinção moral entre oprimido e opressor. Só o retorno à objectividade moral pode permitir o radicalismo político; só o restabelecer do mundo do ser pode parar o mundo do devir: “Devemos amar este mundo mesmo para o mudar. Também se disse que devemos amar um outro mundo (real ou utópico) de forma a que tenhamos objectivos para a mudança do nosso…O progresso tem que significar que estamos continuamente a mudar o mundo para o adaptar à nossa visão e não que estamos continuamente a mudar de visão.” Como se para correr os 110 m barreiras estivéssemos sempre a colocar a meta para trás; faria sentido continuar a chamá-los de 110 m? Que sentido tem um progresso sem regras, sem um objectivo?
 

R. H. S. Crossman no seu livro Plato today afirma: “a verdadeira democracia não é platónica porque ela emana da própria ideia de personalidade; o verdadeiro democrata sabe que o mundo ainda tem que ser construído como democrático, portanto ele deve ser considerado pagão, apesar das suas instituições democráticas e das suas igrejas cristãs.” Quer a democracia quer o cristianismo são afirmações incríveis: “Contra a ordem existente e aqueles que a pretendem manter, elas apregoam uma impossibilidade e lutam por a tornar real.”

As ciclopias e respectivas sínteses não deixam de ser ciclopias, nunca são estereopsias. Só a percepção de que este mundo importa e não está separado em absoluto do outro, mas que se encontra interpenetrado e com leis semelhantes, com um tipo análogo de racionalidade e moral, com o mesmo tipo de verdade objectiva. Por isso mesmo a atitude epistemológica certa nunca pode ser a adopção de um sistema filosófico, por mais cativante ou “artístico”, porque todos eles são sempre baseados em premissas e um pouco de lógica, tomando a actividade racional de forma tão estreita, que exclui a maioria das operações intelectuais humanas e a maioria dos homens no seu proceder diário, incluindo os inventores e useiros de tais sistemas. As ciclopias são modas que se repetem ao longo da História e são as grandes inimigas de uma coisa completamente nova: a Boa Nova, o Evangelho.

 


“A vida ou é uma luta apaixonante ou é uma trégua miserável.”


 

A mensagem do evangelho afirma as duas mundanidades, equilibrando o aristotelo-tomismo com o agostinismo. A realidade aproxima-se sempre com dois olhos. Uma ciclopia como a teologia da libertação (e o marxismo) transforma o reino de Cristo num reino deste mundo, transgredindo as palavras do próprio Cristo. Um tipo de cristianismo que assente a sua acção na transformação das estruturas sociais sem transformar o indivíduo, ignora a maior conquista que o homem faz à luz da graça: a do pecado em si próprio. Uma espiritualidade puramente individualista e virada para o outro mundo também é uma ciclopia, na medida em que ignora ostensivamente o facto de que o homem é um animal social, que é formado pelas sociedades onde aparece desde a concepção, a família e a pátria, que a sanidade destas ajudam à sanidade daquele. A Igreja não ensina a ciclopia; ela prega a ânsia da mundanidade-santa de S. Francisco no desejo pela pobreza voluntária, e o direito à propriedade de São Tomás, a mundanidade-outra, pela necessidade de todo o homem possuir algo para se encontrar numa situação de liberdade. O catolicismo prega a insignificância deste mundo em face do mundo que está para vir e a absoluta necessidade e importância deste mundo em face do mundo que está para vir. O “negócio” de Cristo é simultaneamente aqui e na eternidade. Não se jura pela Terra, porque ela é o escabelo (banquinho) dos Seus pés.
 

Em que medida é que esta noção teológica influencia a acção política?
 

Para um protestante, a Salvação é assunto privado, sem intermediários, pessoal. A Igreja é apenas uma associação de crentes, cuja salvação é independente para cada um e independente do corpo da Igreja. Não existe essa coisa de “corpo místico”. É uma concepção quase gnóstica. Esta concepção protestante baseia-se no platonismo de Santo Agostinho, no triunfo da sua soteriologia sobre a sua eclesiologia. A soteriologia é o estudo da salvação; a eclesiologia o papel da Igreja. Agostinho sublinha a natureza da realidade como algo que é para além e outra, relativamente a este mundo. A união com a Igreja leva à graça de Deus que é obra unicamente de Deus (daí a ideia da indiferença das obras dos homens e, como consequência, a via aberta para o determinismo). Ao homem cabe buscar a santidade na Igreja (daí a ideia da sola fide, a fé certa). Se a realidade não está neste mundo, que sentido faz a política secular? A menos que seja uma forma de poder, não fará qualquer sentido, uma vez que nunca será uma forma de justiça já que a verdade não se encontra neste mundo. Está aqui exemplificada a falta de entusiasmo de muitos teólogos pela política, incluindo alguns convertidos ao catolicismo, vindos do protestantismo, como Newman. E explica a falta de visão espiritual daqueles que se ocupam da política neste mundo.

 

Esta noção de que o mundo material é mau ou irreal e de que a verdade não se encontra disponível na matéria é rejeitada pela eclesiologia católica, para quem a Igreja é o corpo de Cristo e a contínua obra de Jesus Cristo na Terra, mesmo que composta de pecadores, tal como um corpo com partes menos decorosas. A salvação individual não existe “porque aqueles que tiverem encaminhado a muitos é que brilharão” e sem obras não existe salvação, mesmo que em última análise ela dependa da Graça. Mas a Graça não é absurda nem caprichosa, ela leva em conta as obras.

 

Chesterton pelo contrário não veio para a Igreja Católica a partir do protestantismo, mas do liberalismo (o partido liberal incluía os socialistas no tempo de Chesterton) e do ateísmo (segundo Pearce, Chesterton foi mesmo fabiano). O primeiro movimento de Chesterton no caminho para a religião foi mesmo o de rejeitar o platonismo. Para Chesterton, a existência era maravilhosa e jamais se poderia ignorar ou menosprezar este mundo – isso seria um bilhete para a loucura. Este mundo não é uma ilusão, é maravilhoso. Este lado aristotélico em Chesterton ligou-o à política e à sua crença de que é possível agir sobre o curso dos acontecimentos neste mundo. A crença numa filiação comum de todos os homens sem excepção.

Chesterton era aristotélico no sentido de que partilhava esta mundanidade-outra; e tomista no sentido em que no seu amor por esta vida nunca ignorou a vida além desta, que ilumina o presente com a sua luz, simultaneamente pálido em face dessa luz: “eu nunca perdi a noção de que esta é a minha vida real; o prenúncio de uma vida ainda mais real, uma experiência perdida na terra dos vivos.” E Newman abandonaria o puro platonismo agostiniano para abrir a porta ao aristotelismo, num movimento inverso, i.e., a realidade do outro mundo interpenetra e é constitutiva da realidade deste: “a presença de Cristo não é uma coisa à distância, nem Cristo é separado de nós como o sol, iluminando-nos mas mantendo a distância; pelo contrário, encontramo-nos cercados por uma atmosfera e imersos num meio no qual o amor e a luz nos tocam por todos os lados.” O aristotelismo foi o primeiro movimento de retorno do cepticismo em Chesterton: aproximar a realidade primeiro pelo que se vê e só a partir daqui inferir sobre o que não se vê. Uma vez na doutrina da Criação, a mente de Chesterton é conduzida à fraternidade humana na filiação divina, à comunhão dos santos, ao corpo místico de Cristo. Resumindo: ateísmo → aristotelismo → cristianismo tomista → eclesiologia ˃ soteriologia. Embora Newman fosse muito mais neo-platonista na sua origem, em face da sua vinda do anglicanismo, ele evoluiu para uma posição final em que a eclesiologia também superava a soteriologia individual.

 

Este modo original inglês de ver o catolicismo, não escolástico, mas aristotélico-tomista (aproximar primeiro a realidade deste mundo pelo que se vê e só depois fazer o movimento para o que não se vê), com ênfase na epistemologia da criança e na convergência de probabilidades, no sentido ilativo, tornou Newman um herege na Inglaterra da década de 1840, mas por outro lado um suspeito entre os católicos, pagando um preço como pioneiro, que o catolicismo mais tarde não exigiria a Chesterton : “Sendo um exemplo sublime de que a fé pode crescer em qualquer solo, e de que uma mente brilhante pode ver a Igreja de qualquer ângulo, ele causou aquela estranha impressão nos da sua fé católica de ser um estranho,  demasiado estranho para ser considerado imediatamente um par.” Depois deste constatar de que Newman foi sempre mantido “à vista” por Manning, Chesterton elogia a sua mente prodigiosa: “As aulas de Newman sobre O Estado Actual dos Católicos, uma resposta à onda de anti-papismo dos anos de 1850, foram dadas praticamente contra uma multidão em fúria. Havia algo maior do que o humor, existia o próprio divertimento, quando na primeira aula sobre a Constituição Britânica, Newman a explicou como se se estivesse a dirigir a um congresso de russos.”
 

Chesterton e Newman ou a base de acção política. O realismo metafísico, um processo tipicamente inglês: a noção de que este mundo é real e a percepção da existência de uma realidade-outra e não de uma outra realidade.

 

 

António Campos

 
 Para este texto citam-se como fontes:



1- Donald Attwater, Modern Christian Revolutionaries. The Devin-Adair Company, NY, 1947, cap. II: G K Chesterton, by F. A. Lea.

2 - David Paul Deavel, An Odd Couple. A First Glance to Chesterton and Newman. Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, vol 10, 1, 2007, pp. 116-135 | 10.1353/log.2007.0003.

3 – Sheridan Gilley, Chesterton's Politics. The Chesterton Review, 21 (1/2):27-47 (1995).

domingo, 3 de maio de 2015

O Argumento Ontológico - 2ª Parte : O Deus da Alegria

 
 




É muito significativo que um dos maiores filósofos da História tenha começado a sua teoria do
conhecimento com um muito louvável audere sapere, ousa saber, e a tenha concluído com um  lamentável não sei. No que concerne à origem e natureza das coisas, é melhor iniciar com um não sei e um ousa saber e terminar por concluir alguma coisa. Esse amor pela verdade e a noção de a ter alcançado, ou pelo menos da possibilidade objectiva de a alcançar, é um dos fundamentos da felicidade. E a melhor atitude epistemológica é a humildade. A busca não é uma finalidade em si, é uma atitude. A finalidade é uma conclusão. “Uma mente aberta, tal como uma boca aberta é sinal de tolice. Ter uma mente aberta não é nada; o objectivo de abrir a mente, como o de abrir a boca, é poder fechá-la (sobre algo sólido).”

A comparação de Chesterton é muito ilustrativa: saber, tem a mesma raiz etimológica de saborear, gostar. Esta dimensão outra, remete o agnosticismo para uma sensaboria e projecta o “saboreai e vede como o Senhor é bom” para uma outra dimensão, a do conhecimento.


Chesterton não só disse que sabia, como revelou uma natureza impregnada de beleza e de alegria, polvilhada com sentido de humor. Um humor como o de Cristo que chamou aos filhos de Zebedeu, Tiago e João, filhos do Trovão (Mc 3,17), mas mais tarde recusou a sua sugestão para fazer descer fogo do céu sobre os samaritanos (Lu 9,54). Cristo perdoa-lhes a sua total incompreensão do conteúdo da Sua mensagem e ri-se do Seu próprio desespero.


1 – A Humildade como expressão de Gratidão e a Alegria como expressão da humildade


Chesterton expressa a sua gratidão por ter sido incluído num universo extraordinário, porque, com todas as suas dificuldades e aparentes contradições, ele começa por nos revelar o amor da nossa mãe, a bondade, a beleza e a verdade (no sentido de racionalidade) deste mundo.


Essa gratidão que resulta da dádiva de nascer está ilustrada no Evangelho quando Cristo sugere que se convidem os aleijados, os pobres, os coxos e os cegos, precisamente porque eles não podem retribuir.

"Existe nos bastidores da nossa vida um abismo de luz, mais ofuscante e insondável do que um abismo de escuridão; é o abismo da realidade, da existência, do facto de que as coisas existem realmente, de que nós próprios somos incrivelmente e por vezes inacreditavelmente reais. Trata-se do facto fundamental do existir contra o do não existir; é impensável e, no entanto, não podemos deixar de o pensar, embora por vezes não pensemos nisso; não pensamos e, sobretudo, não agradecemos. Aquele que tomou consciência desta realidade sabe que ela extravasa, literalmente até ao infinito, todo e qualquer argumento a favor da sua negação, e que por baixo do nosso palavreado existe um sentimento subconsciente de gratidão.

Essa evidência de afirmação é o substrato dos poetas, porque eles têm uma melhor capacidade de perceber as coisas iluminadas por essa luz do que os outros homens…A Criação foi a maior das revoluções. Era por ela que as estrelas da manhã cantavam em uníssono, como dizia o antigo poeta; e os poetas mais modernos, como o poeta medieval, podem descer bem abaixo desse pico de realização, extraviar-se, tropeçar e parecerem perturbados; mas reconhecê-los-emos como Filhos de Deus enquanto ainda cantarem com alegria. Isto é muito mais místico do que essa coisa moderna chamada o optimismo; pois é muito raramente que entendemos, como uma visão dos céus plenos de coros de gigantes, o dever primeiro do louvor.”       


 


2 – A percepção do mundo pela criança é o amor ao universo


A única possibilidade de compreender o mundo não por meio de um sistema – uma coisa sempre simples, lógica, unilateral – mas por co-naturalidade. Compreender o mundo usando a própria natureza complexa, paradoxal, da realidade: “Dickens se tivesse que lavar o mundo, fá-lo-ia numa fábrica de graxa. (…) Dickens que era infeliz naquela idade em que a maioria das pessoas é feliz, foi um homem feliz na idade em que a maioria dos homens chora. (…) O seu tipo de optimismo não exalta o universo, não admira o universo; ele ama-o completamente. A existência para estes homens tem a mesma natureza da estonteante beleza de uma mulher; ama-a mais intensamente quem a ama irracionalmente.”


 



3 – A alegria relaciona-se com a ontologia


- Porque Deus é a fonte primeira da alegria e quanto mais próximo se está desse estado de graça mais se usufrui da alegria:


“A alegria é de natureza expansiva; mas para o agnóstico ela tem que ser contraída. A angústia deve ser concentrada, mas o agnóstico espalha o seu desespero numa inimaginável eternidade. (…) A Cristandade fornece ao homem de forma súbita e perfeita o seu instinto ancestral de estar do lado certo: tendo um credo, a alegria agiganta-se e a tristeza torna-se esporádica e pequena. (…) A maioria dos homens tem sido treinada a ser alegre com coisas minúsculas e triste com as coisas importantes, mas não é da natureza do homem ser assim. O homem é mais ele, mais humano, quando a alegria é o seu traço fundamental e a tristeza é apenas superficial. A melancolia deveria ser um interlúdio, a gratidão o estado permanente da alma.


Devemos lembrar a leveza e mesmo a flutuabilidade dos monges de São Francisco, chamados os saltimbancos de Deus, para os quais a religião não era apenas um romance trovadoresco, mas era mesmo um canto de cotovia: como se os monges tivessem atado uma escada de corda para subir às molduras das estrelas.”


 

4 – A arte e a linguagem, criações humanas, como expressão da alegria:

A retórica e a imagem têm a especial missão de romper o bloqueio que circunscreve a mente ao mero raciocínio, revelando o sentido de beleza em todas as coisas. Como o ser remete a uma origem, também a beleza remete a uma origem, e ambas despertam a alegria de uma ligação a algo superior:

“O homem é uma criatura. Toda a sua felicidade reside em ser uma criatura, ou, como a Grande Voz nos ordenou, em ser uma criança. Toda a alegria reside em receber uma prenda ou presente, que a criança valoriza sobretudo por ser «uma surpresa». Mas uma surpresa implica algo que surge de uma fonte externa; e a gratidão decorre de que ela tem uma proveniência de alguém que não nós. Seja pela porta, seja pela janela, seja pelo marco do correio. Estes limites são as linhas da própria satisfação.

Shakespeare coloca não apenas a alegria, mas a poesia da alegria em todos os seus galhofeiros de taberna; se Hotspur abrisse Falstaff com a sua espada, sinto que todas as fadas de Midsummer Night’s Dream surgiriam a voar de dentro dele.”

 

5 – A alegria tem relação com o acto da Criação, a criação ex nihilo:

Quando o Papa indica que devemos proteger a criação no sentido em que São Francisco nos indicou, ele aponta para algo mais profundo. Deus é Amor e no seu amor criou tudo, ex nihilo, do nada: “Aqui residia o núcleo da ligação de Francisco ao mundo criado. Nós quando afirmamos que um poeta exalta a criação, apenas queremos dizer que ele elogia o universo em si. Mas este tipo de poeta, como São Francisco, realmente elogia toda a criação no sentido do acto da criação. Ele exalta a passagem da não-existência à existência; é aqui que também aparece envolvido aquele arquétipo da ponte, que forneceu ao padre esse nome arcaico e misterioso de pontífice. O místico que vivencia o momento em que não existia nada excepto Deus, visualiza aquele início sem passado, em que não existia nada de nada. Ele não só aprecia tudo mas também o nada de onde surgiram todas as coisas.

De certo modo, São Francisco encarna e responde à terrível ironia do livro de Job; de certo modo ele estava presente quando foram lançados os fundamentos do mundo, com as estrelas da manhã a cantar e os filhos de Deus a clamar por alegria.”

 

Como fazer as pessoas ver de forma correcta, uma vez que “nós ainda nos encontramos no paraíso; os nossos olhos é que mudaram"? Pela mente do artista que nos afasta da excessiva familiaridade e da distorção cultural; não pelo artista que esmera o seu estilo e vive para ele, mas do artista que coloca a sensibilidade do seu coração na sua obra criada: “Stothard e Blake dão bem a imagem do que é um artista que só quer ser artista ou de o artista que tem uma ambição mais alta: ser um homem, i.e., um arcanjo.”

 


6 – O Argumento Ontológico, argumentum e gaudio

- O argumento ontológico decorre da experiência quotidiana, por convergência de probabilidades com a própria experiência e com outros argumentos fundados igualmente na experiência: o eros de São Gregório, a esperança de Marcel, a contingência de São Tomás.

- A surpresa: o núcleo central da alegria que provém de um presente resulta da surpresa. O presente é uma surpresa e só é um presente se for uma surpresa. Uma criança tem alegria pela abertura da embalagem da sua prenda: a surpresa. A vida é uma peça que se desenrola sem determinismo, mas com ampla liberdade, em que as escolhas são livres, mas não são livres de consequências. É esta liberdade que faz da vida uma surpresa; é ela que prova que a vida é um presente.
 
O olhar de uma criança sobre as coisas não se encontra racionalizada, i. e., formatada por sistemas. A criança não pensa que a realidade seja uma convenção, como as notas de banco, os sistemas filosóficos, ou a própria linguagem. A criança descreve a realidade como a percepciona, não a racionaliza. Se vê coisas que não compreende, descreve o que viu, não a explicação que encontrou para o que viu. As crianças são as testemunhas predilectas das equipas que investigam os acidentes de aviação.

 
É um paradoxo que a revelação do Criador do universo seja mais aparente aos olhos de uma criança, mas o paradoxo não é um jogo, uma máscara, ou um estilo: é um revelador. Um revelador que assume a forma de um jogo, porque o humor é inseparável do argumento: é o florescer da própria dialética. Chesterton sempre afirmou que a seriedade não era o contrário do humor, mas sim a sisudez; o humor está para a sisudez como a humildade está para a soberba.

Na parábola do filho Pródigo, o filho mais novo deixa-se de criancices para ser como uma criança e é o filho mais velho que, em vez de adoptar a atitude de gratidão do pai, adopta uma atitude de criancice, um ensimesmamento, mesmo que fundado na justiça; aquela virtude pagã intemperada pela misericórdia:

Em tudo o que se encurva graciosamente existe também uma tendência inerente à rigidez... A rigidez cedendo um pouco, tal como a justiça seduzida pela misericórdia, é o segredo da imensa beleza da Terra. O cosmos é um diagrama um pouco encurvado da sua forma original. Tudo tenta ser direito, rectilíneo, e no entanto, tudo felizmente cede. A rigidez sem flexibilidade não é humana."

A humildade do Filho Pródigo ensina-nos que se queremos tocar o topo das estrelas é melhor primeiro ajoelhar. Uma atitude muito comum em quem vai combater uma batalha, mas a mais desdenhada para quem se senta no conforto de um cargo. Ao ler Chesterton muita gente gela, porque nenhum orgulhoso pode apreciar o gordo inglês e continuar o seu orgulho.
 

Dessa atitude de criança, dessa humildade, vem o maravilhamento com o mundo, não com “o melhor dos mundos possíveis” mas com “o melhor dos mundos impossíveis”, porque o mundo material é bom, a criação é boa. O próprio Deus assumiu forma material e os católicos acreditam na ressurreição da carne – não na transmigração das almas nem sequer no platonismo de se verem livres deste mundo material. Com o maravilhamento vem a gratidão e com a gratidão vem a intimidade com o Criador que permite o sentido de humor: “O teste de uma verdadeira religião é quando o crente se diverte com a sua divindade.” Um homem deve ter muita fé para brincar com a sua divindade; possuir um sentido de sarcasmo com o infinito significa reconhecer que existe algo de eterno e elementar numa piada. A bíblia revela ser elogiosa da graça. Deus tem sentido de humor. O humor é característico dos católicos. Um puritano engraçado não é grande puritano.

- Decorre da autoridade, auctoritas, o poder que decorre da existência de um Autor. Havendo um autor para o universo existe uma autoridade cuja raiz remete ao seu autor. Como disse Cristo a Pilatos: “Nenhuma autoridade terias se não te tivesse sido dada.” Havendo autoridade existe uma instância de apelo último para obter justiça... e para agradecer.

 


7 – A superficialidade como atitude gnosiológica

O espírito da Prússia, tal como o dos clássicos, era sério e recusavam-se a ser superficiais e por isso nunca atingiam a humildade e com ela toda a amplitude da profundidade. Sem humildade não existe proximidade e sem proximidade não existe conhecimento. Quem se recusa a ser superficial não atinge toda a amplitude da profundidade – é um paradoxo.

O mesmo problema existe no Islão: onde não há cavalheirismo não há cortesia e onde não há cortesia não existe brincadeira. A sisudez é característica de todas as falsas religiões, porque ser grave é fazer um ídolo de tudo e mais alguma coisa. O homem é o único animal que não é sério porque é o único animal que ri.

O colapso do puritanismo deveu-se ao facto de que não se pode ser sério durante 300 anos. Shaw recusava-se a celebrar o seu próprio aniversário, porque tinha a falta de humildade de reconhecer que era bom estar vivo. O ego é desafiado pelo humor e é por isso que na Idade Média o mal era desafiado e ridicularizado pelo humor. O humor joga com o homem, despe-o da sua dignidade e fere-o como Caim. A hilaridade apela à humildade e perder dignidade conduz à felicidade. Sem a religião o humor não é possível porque ele envolve a humildade.

A sabedoria relaciona-se com a ideia de que a verdade é clara e acessível; o humor que a verdade é complexa e mística e que pode ser facilmente negligenciada. O humor vê a inconsistência nas coisas e é uma característica católica. As catedrais da idade média têm o riso e o terror enrolados em pedra. As gárgulas nas catedrais góticas são uma metáfora da vida, com as suas dificuldades e horrores (mas também um alerta contra a igualdade, pela variedade e complexidade, um aviso contra estereótipos de beleza física ou intelectual, contra a normalização e uniformidade). A catedral é maior que a gárgula, tal como a vida é maior que as suas dificuldades:

“Não vale a pena andar angustiado com as dificuldades da vida. Na verdade, a maioria dos momentos mais dramáticos da nossa vida quotidiana não são tão dramáticos como pensamos. Na verdade existem momentos decisivos e dramáticos, mas olhando retrospectivamente constataremos que são em muito menor número do que inicialmente nos pareceu.”

 

8 – A alegria exprime leveza e conteúdo enquanto a sisudez exprime paradoxalmente soturnidade e vacuidade

 A comédia e a tragédia exprimem de forma igual a condição humana e é isso que distingue as peças de Shakespeare da tragédia grega e do drama francês. A sátira moderna ridiculariza a vida comum, expondo as classes mais baixas ou ignorantes ao ridículo, expondo o acento ou o sotaque da língua materna, ridicularizando a vida comum, mas esquecendo que os grandes também são ridículos, geralmente ainda mais.

É essencial possuir sentido de humor sobre as coisas mais sérias. As coisas sérias tomadas a sério são demasiado tremendas. O mundo moderno não compreende como o sentido de humor pode acompanhar a seriedade. Uma piada pode ser tão grandiosa que rompe a abóbada do céu. Existe apenas um pequeno passo do ridículo ao sublime.

Quanto mais séria for uma coisa mais ela se deve expressar em termos de grotesco. Se uma coisa é universal encontra-se plena de coisas cómicas. É o teste para uma boa filosofia se ela pode ser defendida de forma grotesca; é o teste de uma boa religião se se pode brincar com ela.

O sentido de humor é o maior antídoto do orgulho. Mas sentido de humor não é estar sempre a rir como um tolo. A risada eleva o espírito e faz com que o homem se esqueça de si próprio numa espécie de convulsão. O homem que nunca se riu de si próprio nunca se descontraiu o suficiente para apreciar toda a amplitude de uma boa piada. Um homem religioso sem júbilo, cai na crendice e no fanatismo, na loucura. A auto-crítica e o rir-se de si próprio é a negação do próprio mal, do orgulho.

 


9 - Brincar ou ter sentido de humor é levar as coisas a sério

Até as coisas piores devem ser vistas no ridículo. Assim era com o diabo da Idade Média. É por isso que Chesterton vê em Dickens uma figura medieval, apesar de o próprio Dickens desprezar a Idade Média. Para Chesterton ter sentido de humor é ser mais sério do que estar sério, pelo que as personagens de Dickens que nos informam mais sobre a alma humana são precisamente aquelas que são mais cómicas. Dickens é a personificação da ideia de que ser sério não é o contrário de ter sentido de humor, mas que as verdades mais sérias podem ser exprimidas pelo sentido de humor. Ser divertido não é superficial, ser divertido chega às raízes do universo.

Chesterton tem quase um sentido místico do humor: “Uma boa piada é a coisa que escapa à crítica. O segredo da vida reside na alegria e na humildade. A alegria é precisamente o que distingue o cristianismo do paganismo. A vaidade não suporta o humor, nem sobre si própria, porque o orgulho é pesado e não pode sorrir. As virtudes pagãs da justiça e temperança são tristes; as cristãs de fé, esperança e caridade são alegres e exuberantes."

Contrariamente aos académicos, as pessoas comuns e os crentes são caracterizados pelo riso. As primeiras piadas do mundo são sempre sobre coisas sérias, como ser casado…ou ser enforcado. Ter piada é o melhor meio de ser sério. Para Chesterton, o sistema penal não deveria ser sério; deveria ser antes como uma creche: deveríamos poder colocar um milionário (ou um político) a um canto e deixá-lo aí de castigo.




 
António Campos



Conclusão:





10 – A queda no mundanismo humano, no viver social, embota o sentido de alegria. A Separação de Deus implica a perda de humildade e, consequentemente de gratidão e de alegria.

Tudo é lucro, posição, comodismo e aparência, portanto as coisas mais importantes da vida – a existência, o amor, a beleza, a bondade – não se conseguem notar porque estão demasiado perto, são tomadas como garantidas. Existem várias razões para a perda do sentido da alegria:

·        Filosófica ou teológica: o extremo cepticismo - com a negação da verdade, da liberdade humana, de uma moral universal – de que é exemplo o impressionismo (não existência de limites), o determinismo e o liberalismo (abolição de limites); ou pela atracção pelo mal, que Chesterton relaciona em Catholic Church and Conversion ao espiritismo.

·         Económico-social: a extrema desigualdade na distribuição da propriedade, que é uma transgressão ao mandamento de Deus: “Ide e possuí a terra.”

“Nunca se pode ter a tonalidade da alegria quando muitos possuem demais e outros não têm nada. (…) A alegria é uma torrente, mas exige que todos os copos sejam inteiramente preenchidos (mesmo que tenham tamanhos diferentes). (…) Numa sociedade capitalista, a alegria é impossível, quer para ricos quer para pobres. Como nas fábulas de Esopo, a raposa não consegue comer de um solitário com gargalo comprido, nem uma cegonha de uma taça rasa. Num caso, a alegria encontra-se muito funda; no outro, muito dispersa. Por outras palavras, ninguém usufrui plenamente: o pobre porque não consegue lá chegar; o rico porque ao perder o gosto pelas coisas, não consegue desfrutar.

·         A ideia de liberdade: “A essência da liberdade reside na diferença entre o bolso e o mealheiro. Algumas reformas sociais colocam mais dinheiro no mealheiro, mas nenhuma coloca mais dinheiro no bolso.” Por exemplo no tempo da fast food, toda a gente fala do colesterol quando se trata de comer boa carne de vaca. No tempo em que quase não se come fruta ou saladas (no mundo anglo-saxónico), surgiu esta adoração pelo vegetarianismo. No mundo em que um chocolate é uma refeição, não se pode colocar mais do que um minúsculo saco de açúcar no café.

“O vinho deve ser bebido quando nos apetece, o remédio deve ser tomado quando é necessário. Trata-se de uma questão de ter o poder de decidir sobre o nosso capital. Trata-se do direito de passar cheques sobre o nosso corpo embora a intemperança seja errada na medida em que significa passar cheques sem fundo.”

Os filantropos têm como epigrama: proteger os pobres de si próprios. Os eugenistas: os mais fracos devem ir para a guerra – o que em si mesmo é um paradoxo.

 

11 – O sentido de humor na Literatura

Uma das áreas onde se entende melhor a ausência de sentido de humor é precisamente na literatura. O humor contém em si a alegria, a sátira não. A sátira é seca. É uma denúncia amarga e impiedosa do que não é perfeito. É a obra de um homem de coração seco e miserável, de um homem só, isolado. Podemos falar em Saramago, Byron ou Heine. Trata-se de um homem que identificando-se com o bem aspira à solidão de Deus, apenas para encontrar a eterna solidão do demónio. O mesmo ressentimento, a mesma amargura. É esta a atitude dos modernos intelectuais: vivem na ilusão da sua própria superioridade. Tratar com ódio e violência o que é detestável, como faz a literatura e o cinema, é alimentar a fogueira, descer a esse nível, viver nesse mundo, duplicá-lo. “Não perderam a cabeça; perderam o coração: provavelmente deixaram-no cair na infância e é por isso que andam tão inchados.” Chesterton aponta então para Shakespeare, Browning, Hugo, Dickens e Dostoiévski; para Auberon Quin (humor) e Adam Wayne (amor) em Napoleão de Notting Hill.

Não existe tradição moderna na literatura inglesa de chamar a uma comédia heroica. Mas a grande comédia como a de Shakespeare pode e deve ser tomada como séria. O riso implica exposição, desprendimento e generosidade.

A ideia de que a comédia é artificial deve-se a um profundo pessimismo – a ideia de que não existe lugar para o riso neste mundo. Para Chesterton a alegria é divina e mística como a religião e muito diferente do tipo de felicidade em que filósofos e aristocratas encontram a sua paz: “Nós devemos ser como os anjos, flutuando, e só o conseguimos se não nos levarmos demasiado a sério”. Chesterton acreditava que a ausência de sentido de humor era uma grande fraqueza num escritor. Atribui a falta de razoabilidade nas afirmações de Goethe sobre Carlyle precisamente à falta de sentido de humor nas obras do escritor alemão. Tennison e outros vitorianos também falharam no sentido de humor. Tal como Carlyle e George Elliot que tanto admiravam a filosofia alemã. Embrenhavam-se nessa sisudez desumanizada.

Chesterton condena a falta de crença na virtude da hilaridade e da alegria na literatura. Contrariamente ao tempo de Aristófanes e Moliére, a literatura hoje só fala de dor e despreza a crença na hilaridade. "De todo o lado nos rodeiam os mesmos sintomas: um hedonismo tão farto de prazer como o doente se encontra farto da dor. Em muitas obras modernas encontramos a sugestão velada e horrível de um Renascimento que se fascina pela beleza do sangue e pela poesia do assassínio."

"Na guerra da moderna literatura, nós não ouvimos nada, a não ser as vozes da dor - tudo é um fonógrafo do horror. É verdade que deveríamos ouvir falar destas coisas e que nenhuma deveria ser silenciada; mas estes gritos de angústia não se encontram tão frequentemente na vida como se encontram na arte moderna, onde são a única voz. Elas são vozes de homens mas não são a voz do homem."

“O riso é tão divino como as lágrimas. A literatura da alegria é muito mais difícil, rara e triunfante do que a literatura a preto e branco da dor. A alegria é indissociável do sentido de humor.”