domingo, 29 de maio de 2016

Boas Histórias Estragadas por Grandes Autores



Se o nome de Shakespeare divide os especialistas, a excelência das suas obras não deixa
de os dividir. Para diminuir a sua genialidade argumenta-se que as histórias já existiam; Shakespeare apenas as teria coligido. De facto, a tragédia de Romeu e Julieta é baseada num conto popular italiano com uma versão inglesa em verso, de Arthur Brooke (The Tragical History of Romeo and Juliet, 1562), King Lear é baseado numa história popular cuja versão escrita data de 1135 (History of the Kings of Britain, por Geoffrey Monmouth), Macbeth nasce de Chronicle of Scotland (Raphael Holinshed, 1587), O Mercador de Veneza, de um conto italiano (Il Pecorone, Giovanni Fiorentino, 1378) e de The Gesta Romanorum, uma colecção de histórias medievais (Richard Robinson, 1577).


Midsummer Night’s Dream é original mas manifesta influência de As Vidas dos Nobres Gregos, de Plutarco, de O Conto do Rei, de Geoffrey Chaucer e de Medeia e Hipólito, de Séneca. De resto, quase todos os escritores e filósofos modernos e contemporâneos foram influenciados pelos clássicos ou por movimentos literários e artísticos, que mais não foram do que revivalismos dos antigos gregos. Nenhum escritor, nenhum filósofo, pode afirmar honestamente que tudo o que produz veio exclusivamente de si. A filosofia alemã, em particular, é um ressurgimento grego.


O mérito de Shakespeare é reunir numa única história várias fontes, como peças de lego, para descrever a condição humana, o homem como ser político e espiritual, e, last but not least, encontrar o fio de prata da moral. Temas como o amor, casamento, relações familiares, papel dos sexos, raça (como em Otelo), classe social, humor e traição, doença, vingança, mal, crime e morte, mantêm as suas peças vivas na actualidade e com um carácter perene. O seu mérito é escrever para as massas, conferir às suas peças um carácter cinematográfico, ampliar as personagens secundárias, expor as limitações das convenções humanas, explorar os perigos e contradições das aventuras morais. Sobretudo apontar que as nossas escolhas têm consequências. Macbeth ilustra como a ambição desmedida é uma degenerescência do homem e como o arrasta de crime em crime para o poço da decadência: 

“A peça Macbeth é, num sentido inequívoco, a tragédia cristã; para ser contraposta à tragédia pagã de Édipo. O ponto fundamental em Édipo é que ele não sabe o que está a fazer; o ponto fundamental em Macbeth é que ele sabe muito bem o que está a fazer. Não se trata de uma tragédia do destino, mas de uma tragédia do livre arbítrio. Ele é tentado pelo diabo, mas não é conduzido pelo destino.” (Chesterton, On a Humiliating Heresy, 1929 e Come to Think of It, 1930).



Em O Mercador de Veneza contrasta-se a velha moral do “olho por olho, dente por dente”, ressurgida com a Reforma, com a moral neotestamentária da graça e da misericórdia. Aborda-se a questão da usura, repetidamente condenada pela Igreja Católica, mas confere-se a um judeu o direito de se defender e expor os seus argumentos.



Nas obras de Shakespeare, encontram-se exposições da filosofia egoísta ou do existencialismo, como se fossem ressurgimentos tardios de Plutarco e Epicuro ou precoces de Nietzsche ou de Sartre, com uma particularidade subtil: num louco como Ricardo III, "A consciência não passa de uma palavra que os cobardes usam, concebida a princípio para amedrontar os fortes. Que os nossos fortes braços sejam a nossa consciência, as espadas a nossa lei!", ou num Hamlet que se faz passar por louco, “Nada é mau ou bom (em si mesmo), excepto na cabeça do homem.” Encontra-se a solidão do antropocentrismo, a misoginia, a misantropia e todas as suas contradições existencialistas, no diálogo de Hamlet com Rosencrantz, lembrando Camus: 

“Perdi toda a alegria, (…), a terra parece-me um promontório estéril (…). Que peça de arte é o homem! Tão nobre como ser racional! Como toca o infinito nas suas faculdades! Como se expressa e quanto admirável é quando em forma e movimento! Em acção é como um anjo! Na apreensão como um deus! A beleza do mundo, o mais excelso dos animais! E, no entanto, o que é para mim esta quintessência do pó? O homem aborrece-me e a mulher também.” 

Em Otelo, a questão da raça é mais metafórica do que literal. Nele se encontra o problema do outro, daquele que não é próprio, do estranho, do estrangeiro, com todo o seu cortejo de ignorância, desconfiança e rejeição. Ninguém retrata melhor a questão da fidelidade da esposa e da humilhação perante um marido ciumento ou a questão da inveja e da maledicência entre famílias ou em ambientes competitivos.


Não se nega que Shakespeare tenha recebido influências; antes se afirma que tal é próprio da vida em sociedade. Mas apontar as influências para diminuir Shakespeare, é ignorar que Shakespeare descreveu um todo significante: a condição humana, a injustiça e os jogos de poder, a razão divina e a razão de Estado, o problema da moral e da finalidade do mundo e do homem, a ideologia e a religião, a verdade e a beleza, questões prementes na Inglaterra isabelina como o são no Ocidente moderno:


“A verdade pode parecer, mas não ser

A beleza pode ufanar-se, mas só parecer

A verdade e a beleza, sepultadas ser.”, (Shakespeare, A Fénix e a Tartaruga).





Não foi só a qualidade literária que assegurou a Shakespeare o segundo lugar no pódio dos mais lidos em todo o mundo, foi o conteúdo gnosiológico e a ligação teatral ao homem comum. Chesterton num ensaio admirável aponta precisamente este detalhe: há autores que escrevem bem, mas só escrevem loucura e um rol de pressupostos estúpidos, contradições e mensagens doentias, paranóicas ou deprimentes. Ocorrem-me excelentes escritores neste rol. Saltimbancos da escrita que metem dó; cuja vida e cuja morte foram horrendas. Infelizmente a “arte pela arte” fez o seu curso e muitas pessoas louvam escritores pelo deslumbre da sua escrita sem se deterem no conteúdo. Há mulheres que exaltam escritores ou filósofos que não conferem à mulher a dignidade de um ser humano. Em Shakespeare a mulher é aquilo que ela é, foi e será, para um homem são: o mistério, a superlativa proposta estética, a graciosidade e o pragmatismo, a sensatez e a complementaridade.





O referido ensaio de Chesterton aponta ainda mais um detalhe: há autores que escrevem admiravelmente, mas estragam, porque desvirtuam, as histórias originais. Chesterton dá o exemplo de três grandes autores: Milton, Göthe e Wagner. E, comparando com Shakespeare, ele afirma que Shakespeare melhorou todas as histórias que reinventou. Essencialmente porque a filosofia que transparece das obras de Shakespeare é uma filosofia cristã, enquanto que a filosofia desses outros autores é um deísmo, hegelismo ou relativismo. Em Shakespeare existe sempre uma régua e ela é, sem sombra de dúvida, neotestamentária. “Shakespeare encontra-se possuído por um sentimento que é a primeira e mais importante ideia do catolicismo: a verdade existe, gostemos dela ou não; somos nós que temos que nos adaptar à verdade.” (Chesterton, Shakespeare and Milton, ILN 8 de Junho de 1907).

"Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.(...) Nada vem do nada. (...) O príncipe das trevas é um cavalheiro. (...) Diz o que sentes e não o que deves dizer. (...) Lamentar uma dor passada no presente é criar outra dor e sofrer novamente."  São frases de King Lear que ilustram uma filosofia perene.


Pode interpretar-se Shakespeare de acordo com o todo integrado e significante presente em todas as suas obras, na sua religião, na sua moral; ou pode torcer-se Shakespeare de acordo com a nossa própria heresia. Como diz Joseph Pearce, existem dois tipos de pessoas: as que alteram os livros e as que deixam que os livros as alterem a elas.


“É suposto que por Shakespeare ter tomado a lenda de King Lear, ou Goethe a de Fausto ou Wagner a de Tannhäuser, eles as melhoraram e que as lendas lhes devem estar gratas. Eu desconfio sempre do individualismo estreito do artista e antes confio no comunismo natural do artesão. Eu creio que existe algo mais elevado que o homem de génio – é o génio do homem. Deixo Shakespeare fora deste argumento, porque eu creio que ele se especializou em fazer grandes obras a partir de novelas medíocres.”





“Milton, num sentido, estragou o Paraíso do mesmo modo que a Serpente. Ele fez um poema magnífico e, contudo, falhou o ponto poético. Ele faz Adão ingerir o fruto proibido, não tentado, mas para ser solidário com Eva, partilhando a sua queda. E assim, transforma a maldade humana numa forma de cavalheirismo. Ora, a nossa maldade não surge de se ser magnânimo. Se somos libertinos e patifes, como decerto somos, isso não se originou do facto de que o nosso primeiro antepassado fosse um marido e um cavalheiro. A história bíblica é bastante mais subtil. Lá se encontra a descrição do mal como aquela insolência irracional que não aceita mesmo as condições mais básicas; aquela anarquia antiartística que objecta a qualquer limite, pelo facto de ser um limite. 

Nunca é dito que o fruto fosse muito saboroso ou especialmente belo; ele foi cobiçado por ser proibido. No Éden existia um máximo de liberdade com um mínimo de veto; mas algum veto é essencial até para gozar de liberdade. A coisa mais importante de um prado é o seu limite. Sem o limite o prado torna-se uma lixeira, como aconteceu com o Éden quando se perdeu o seu limite. A ideia bíblica de que todos os pecados e sofrimentos se originam numa certa febre de orgulho, que não poderá disfrutar a menos que o controle, é uma verdade mais profunda e penetrante do que a sugestão de Milton de que um cavalheiro se viu enredado no seu cavalheirismo por uma senhora. O Genesis, com sensatez, mostra um Adão que perdeu o seu cavalheirismo após a Queda de forma clara e surpreendente.”






“O mesmo tipo de degenerescência se observa no caso de Goethe e da lenda Fausto. Não me refiro, evidentemente, à poesia em particular, que está acima de qualquer crítica. Refiro-me ao esboço do Fausto de Goethe – ou melhor, ao esboço contido na primeira parte, uma vez que a segunda parte não possui qualquer esboço. Na versão medieval, Fausto é amaldiçoado por cometer um grande pecado: jurar lealdade ao mal eterno de forma a que pudesse possuir Helena de Tróia, a sensualidade carnal. O velho Fausto é condenado por cometer um pecado terrível; o novo Fausto salva-se por cometer um pequeno pecado. O Fausto de Goethe não é encantado e desgraçado por um excepcional atributo de uma dama singular. 

O Fausto de Göthe, mal chega a adulto logo se torna um patife. Enrola-se logo numa intriga – não digo confusão, porque (como quase sempre em casos similares) só a mulher é que é enrolada. Seguramente que existe aqui algo do lado mais sombrio da Alemanha, algo do sentimentalismo pueril, nesta confusão de sedução e salvação! O homem arruína a mulher; por consequência a mulher salva o homem; e aqui reside a moral die ewige Weiblichkeit (o eterno feminino). Alguém que não ele arcou com o sofrimento; e no final a sua crueldade é o mesmo que a sua bondade. Pessoalmente, prefiro o antigo conto com marionetes, em que Fausto é dilacerado por diabos negros e precipitado no inferno. Parece-me um final menos deprimente.”






“O mesmo princípio, se vejo bem, impregna a versão de Wagner de Tannhäuser – ou melhor, a sua perversão de Tannhäuser. Esta grande lenda da Idade Média, contada correctamente, é uma das coisas mais tremendas na história humana ou nas fábulas. Tannhäuser, um grande cavaleiro, cometeu o pecado terrível que o tornou proscrito da comunidade dos pecadores. Ele tornou-se por pacto, amante da própria Vénus, a encarnação da sensualidade pagã. Saindo das cavernas tenebrosas para o sol, extraviou-se para Roma e perguntou ao Papa se pelo arrependimento se podia salvar. O Papa respondeu-lhe que existem limites para tudo. Um homem que se separou tanto da moral cristã pode tanto arrepender-se como o bordão do Papa desenvolver de novo folhas verdes. Tannhäuser afastou-se em desespero e mergulhou de novo nas cavernas da morte eterna; só que o Papa olhou para o seu bordão uma bela manhã e viu que nele rebentavam de novo folhas. Para mim, este final é uma terrível colisão de agnosticismo com catolicismo. Creio que Wagner fez Tannhäuser regressar arrependido uma segunda vez. Se isto não é estragar uma história, não imagino o que seja tal coisa.”





“Finalmente, falo da peça Salomé de Oscar Wilde. Mais do que qualificar a sua moral, parece-me ser profundamente antiartística. Ora, o ponto vital da história bíblica reside na inocência e indiferença da jovem dançarina. Um déspota planeava dar umas indulgências; uma rainha dissimulada planeava uma vingança cruel. A dançarina (sempre a imaginei como uma criança) era filha da rainha vingativa e dançou perante o déspota. Num relaxamento túrgido ele oferece à menina qualquer presente que ela escolha. Encantada com uma tal benevolência de contos de fadas, ela corre à mãe a perguntar que presente escolher; a rainha cruel viu a sua oportunidade e pediu a morte do seu inimigo. Em vez deste conto poderoso e irónico de usar uma borboleta como vespa, a Salomé de Wilde é portadora da ideia doentia e vulgar de se encontrar apaixonada pelo profeta. Não sei se isto é má moralidade, uma vez que a sua moralidade é o seu efeito na humanidade. Mas eu sei que é má arte, porque a sua arte é o seu efeito em mim.”







António Campos

domingo, 22 de maio de 2016

O Homem Que Era Shakespeare




Ouvir especialistas falar sobre Shakespeare é como definir chocolate descrevendo o papel
em que vem embrulhado: «Shakespeare provavelmente não era Shakespeare e muito do que escreveu não era dele, ele apenas reuniu e rescreveu lendas que já existiam». Quando se passam vários séculos, um juízo nunca toma completamente em conta as condições da época, incluindo documentais. O mesmo erro poderá ter cometido um conhecido escritor quando afirma numa obra de ficção que Thomas More recolheu a sua Utopia da boca de um anónimo Rafael numa ilha distante. Eu não sei se no século XXIV um crítico escreverá que Manuel Alegre ouviu a “Trova do Vento que Passa” da boca de um guitarrista; mas o que eu sei é que tal seria muito menos chocante (e perigoso) que se o escrevesse hoje. Tal como no ensaio Introdução ao Livro de Job, Chesterton afirmava que o essencial não era se um homem x ou y escrevera algo, mas sim a importância do algo que alguém escrevera. Ideia reafirmada, de forma irónica, mais tarde:

“Eu não pretendo saber muito sobre Shakespeare, para além desse aspecto supérfluo que é o conteúdo das suas obras.” (ILN, 1 de Outubro de 1927). Atacaria a ideia de Mark Twain de que Shakespeare seria Bacon, o pseudo-cientista: “A verdade, receio, é que a loucura possui uma vantagem sobre a sanidade. A sanidade é sempre despreocupada; a loucura sempre cuidadosa. Um louco pode contar todas as grades que cercam Hyde Park; pode conhecer o seu número exacto por ter pensado que elas eram outra coisa. Um homem são não conhece o seu número, talvez nem a sua forma; ele não conhece nada sobre elas, excepto a verdade suprema, sublime, platónica e transcendente, de que elas são grades. (Bacon-Shakespeare, 9 de Março de 1907). Chesterton afirma mesmo que quem elabora teorias sobre Shakespeare sem primeiro conhecer bem a sua obra é que é lunático: “O homem são que é suficientemente equilibrado para ver que Shakespeare escreveu Shakespeare, também é suficientemente equilibrado para não se importar se foi mesmo Shakespeare que escreveu Shakespeare.” 

Por outras palavras, o valor do mensageiro reside na mensagem.

Mas não há dúvida que a mensagem nos diz muito sobre o seu autor e, conhecido o autor, podemos entender mais plenamente a mensagem. Trata-se de uma relação biunívoca.

O segundo canal da TV portuguesa é muito pouco popular, embora seja provavelmente o melhor. Dedicou uma parte importante da sua programação à comemoração dos 400 anos de Shakespeare. Nele passou um programa da BBC, em que num dos seus episódios se abordava precisamente a questão da verdadeira identidade de Shakespeare. Seria Shakespeare, o homem Shaksper de Stratford-upon-Avon ou seria Edward de Vere, o 17º Conde de Oxford, amante da rainha Isabel I?



Shakespeare foi a alma de uma época conturbada. Segundo Harold Bloom, a base da cultura ocidental no drama e o re-inventor do “humano”. Duvido que tenha sido o re-inventor do humano, mas seguramente colocou em palavras, coisas que estão para além das palavras. A “idade do ouro” era na verdade uma idade de genocídio e despotismo, de espionagem e guerra. A Inglaterra deixara de ser católica por decreto real com Henrique VIII, voltara a ser católica com Catarina de Aragão, deixara de ser católica novamente com Isabel I, voltaria a ser católica de novo com Jaime I. Não diria não católica, diria não romana, um catolicismo centrado na figura do rei e não na figura do Papa. A Espanha tinha sido humilhada no seu orgulho - a fúria - por um misto de cegueira, estupidez e negligência, no desastre da Grande Armada. A Inglaterra erguer-se-ia como a grande potência ocidental. Pelo meio, os aldeões viram-se desapossados dos seus baldios, os católicos dos seus haveres e três milhões de irlandeses perderam a vida. Era uma época de terror. A Inglaterra tinha deixado de ser católica romana por decreto, como a Rússia iria deixar de ser ortodoxa por uma revolução…Mas não se muda a alma de um povo num dia.


William Cecil, lorde Burghley, puritano, foi a mão direita da rainha por 40 anos. A um nobre estavam interditos a arte e o teatro, representação e fingimento, recantos do demónio. O Deus puritano é um pouco como o Deus muçulmano: sempre presente, distante e sério, vingativo e impiedoso. Um nobre deveria ocupar-se da guerra e da política ou diplomacia. Não fora o amor da rainha pelo teatro, nenhum teatro teria sido possível. Por ela, a Inglaterra abraçava o Renascimento que surgira na Europa continental 100 anos antes. Ela defendeu o Teatro Popular. Num país com 80% de analfabetos, o teatro era um poderoso meio de comunicação. A relação com a política seria a mesma que hoje tem a comunicação social: a mesma promiscuidade, a mesma manipulação, as mesmas represálias, a mesma dissimulação. Muitos actores e encenadores foram presos e muitas companhias dissolvidas. Tal nunca aconteceu a Shakespeare. Tal como o conde de Oxford que nunca foi punido pelo seu alegado catolicismo.




Outro facto interessante é que Shakespeare encarnava o ethos do seu tempo (aventura, paixão, expansão do pensamento humano), mas ninguém sabia onde vivia o homem que era Shakespeare. O “espírito” da época era um fantasma. Quando em 1616 morre, o silêncio é absoluto, ninguém de Londres vai ao seu funeral em Stratford. Só em 1623, seis anos após a sua morte, foi publicada a primeira colectânea das suas obras, onde aparece o primeiro retrato da sua pessoa. Ben Johnson esperou sete anos para publicar a obra.

William Shaksper existiu, era um plebeu que foi para Londres como roupeiro ou camareiro. A sua vida como plebeu está bem documentada. Era um comerciante mesquinho que açambarcava cereais em tempo de fome, que cobrou a um sacerdote que o visitara o vinho que bebeu, que processou um homem por 14 pence, que frequentemente litigava em tribunal por assuntos mesquinhos, que deserdou a sua mulher. Apesar do teatro onde trabalhou ter ardido, tal como a própria cidade em 1666, os escritores, actores e dramaturgos da época, como Ben Johnson ou John Fletcher, deixaram documentos comprovativos da sua actividade; de Shaksper, nada!

O seu testamento não tem qualidade literária, nenhuma evidência existe de que este plebeu da província tenha recebido qualquer tipo de educação ou que tenha vivido da escrita. Não conservou nenhuma cópia das suas peças. Quando se reformou com 40 e tal anos e regressou a Stratford, nunca mais escreveu nada. Nenhum manuscrito foi alguma vez encontrado escrito pelo punho de Shaksper. Não possuía livros, nem sequer a bíblia. As biografias de Shakespeare são numerosas, mas são “wishful thinking”, desprovidas de factos e documentos e plenas de opinião e suposições dos autores.



Se seguirmos a citação de A Arte da Poesia Inglesa de 1589, “Conheço muitas senhoras neste tribunal que escrevem meritoriamente e suprimem o que escrevem ou pagam a alguém que assuma a autoria”, entendemos o dilema de quem gosta de escrever, mas tem uma posição social a ocultar. Os fidalgos nunca poderiam escrever para o divertimento das classes inferiores (infra dig).

O nome William significa elmo. Ateneia, deusa patrona de Atenas, local onde nasceu o teatro moderno, é também a deusa do disfarce, uma vez que o seu tio, Hades, lhe deu um elmo que a tornava invisível. Shake-a-Spear, significa agitar uma lança. Ateneia era a que agitava a lança.





O domínio de conhecimento que Shakespeare possuia dos clássicos, de falcoaria, de esgrima, de música, dos tribunais, da corte, dos mecanismos da política e do poder, de Itália, sugere alguém com uma cultura geral extraordinária e uma preparação académica exigente e sistemática. Alguém dentro da corte, descontente com a sua situação e cujo nome estaria destinado ao esquecimento. Para entender quem era o homem que assinava como Shake-a-spear, teremos que relacionar Hamlet com a corte, entender Hamlet como uma obra auto-biográfica.

Esta pessoa que se ocultava e que foi votada ao esquecimento era provavelmente Edward de Vere, 17º conde de Oxford.

Esta questão chegou ao Supremo Tribunal em 1987, onde compareceram especialistas em Shakespeare de toda a Commonwealth e dos Estados Unidos. Edward de Vere foi descrito com um carácter muito próximo do de Camões: um aventureiro que arrisca o seu nome na praça pública, com amantes e filhos ilegítimos, vende os seus bens, preso na Torre de Londres. O seu pai patrocinava uma companhia de teatro desde 1492. Em 1561, Isabel I visitou a sua casa, o castelo de Hedingham…para ver uma peça de teatro. De Vere tinha 11 anos. Na sequência do falecimento do pai, no ano seguinte foi chamado à corte como pupilo da rainha e cai sob o domínio do homem mais poderoso do reino, Lorde Burghley, que o casou com a filha e lhe controlou a vida e a fortuna. De Vere estudou direito e um colega de Cambridge, Gabriel Harvey, elogia a sua escrita: “Vede como grandemente tu te excedes nas letras; teus olhos emitem chispas, teu semblante agita uma lança (shakes a spear). A sua proximidade com a rainha (com vinte e tal anos era o primeiro conde da corte e o favorito de uma rainha sem descendentes) e o seu sentido de impunidade levavam-no a desenhar uma coroa por cima do seu nome e sete traços por baixo, sugerindo o título de Eduardo VII, o que, em condições normais, seria o suficiente para lhe provocar a morte.




Em 1575 foi para Itália e ao voltar constrói o primeiro teatro de Londres, o Globe. Nas suas peças, a Commedia dell’Arte e frases coloquiais italianas, marcam presença e testemunham alguém com amor pelo Renascimento italiano. A mulher traiu-o e ele recusa vê-la ou ao filho que afirmava não ser seu. Afasta-se dos Burghley; afasta-se do homem mais poderoso de Inglaterra, William Cecil. Vai morar no exacto local onde nasce o primeiro teatro de Londres. Em 1586, a rainha concede-lhe uma pensão vitalícia de 5 mil libras, algo como 5 milhões de dólares a valores actuais, algo muito fora do comum. Muito presumivelmente De Vere era seu amante. A rainha pouparia o presumível filho de ambos, no final do seu reinado, após a Rebelião Essex, Henry Wriothesley, o conde de Southampton. Em 1593 e 1594, o nome de Shakespeare seria impresso pela primeira vez nas peças “Vénus e Adónis” e “O Rapto de Lucrécia” e a dedicatória seria a…Henry Wriothesley, conde de Southampton. A colectânea de 150 sonetos publicada 8 anos após a revolta Essex também menciona um “belo jovem”, identificado como o conde de Southampton.




Shakespeare conhecia bem a rainha e sabia que ela era mais uma espécie de prostituta do que de virgem. Ela encontra-se representada em todas as suas peças, onde a história da virgindade é exposta como um mito. Ela é a Dark Lady que não deveria deixar sem descendência o sangue Tudor: “Meu verso será vosso monumento que olhos ainda não nascidos verão”.

William Shaksper de Stratford só aparece como accionista do Globe Theatre quando as peças começam a sua exibição. Não se conhece qualquer relação dele com o conde de Southampton.




Hamlet era ele mesmo patrono de actores. Polónio era Lorde Burghley que De Vere mata na peça, como espião e intriguista, não o podendo matar na vida: “aceita de todos os homens a censura mas guarda o teu juízo”, diz Polónio a Hamlet. Polónio era o braço direito do rei. O rei e a rainha eram ao mesmo tempo usurpador, no sentido em que o anglicanismo usurpou o direito religioso, e traidor, no sentido em que Isabel I sempre manteve De Vere na obscuridade da alcova. O Shaksper de Stratford jamais sairia de uma tal peça com vida. De Vere nem sequer foi preso por este motivo. O desastre da relação entre Ofélia e Hamlet espelha a relação disfuncional de De Vere com a filha de Lorde Burghley, Anne Cecil: 

“Ser ou não ser, eis a questão

Há mais nobreza na alma

Em sofrer com os golpes e as flechas da ultrajante sorte,

Ou em pegar num mar de problemas e, ao enfrentá-los

Dar-lhes fim?


Morrer, dormir, nada mais.

E, ao dormir, dizer que pomos fim à angústia

E aos mil golpes naturais que são a herança da carne.

É uma consolação a ser devotamente pretendida.

Morrer, dormir, dormir, talvez sonhar. Eis a dificuldade.



Pois não sabermos, no sono da morte,

Que sonhos nos podem visitar

Quando despirmos este invólucro mortal,

Leva-nos a hesitar.



Eis o motivo para a calamidade de uma vida tão longa.

Pois quem suportaria os golpes e o escárnio do tempo,

A injúria do opressor, as dores do amor não correspondido, a morosidade da lei,

A insolência do poder e o desdém que o mérito paciente recebe dos indignos,

Se pudesse saldar as dívidas com um punhal?



Quem carregaria fardos,

Gemendo e chorando,

Numa existência cansativa,

Se não fosse o temor de algo após a morte?



O território inexplorado de onde nenhum viajante regressa,

Confunde a vontade

E faz-nos suportar os males que temos,

Em vez de ter que suportar outros, que desconhecemos.



Assim, a consciência faz de nós cobardes

E o rubor natural da determinação

É impedido pelo pensamento.



E tarefas requerendo grande vigor e determinação

Desviam-se do seu curso

E até o nome de acção perdem.”



Afirma um agonizante Hamlet:


“Por Deus, Horácio, que ferido nome,
Sendo as coisas assim ignoradas,
Viverá depois de mim?
Se algum dia me albergaste em teu coração
Ausenta-te por uns tempos da felicidade
E neste severo mundo
Respira com dor
Para contar a minha história.”




António Campos



domingo, 8 de maio de 2016

A Cidade Vermelha





A escola do pensamento moderno é sem dúvida norteada pela moda e pela fugacidade. É
a marca dos próprios meios de comunicação onde nasce para o público, se expressa e se torna lucrativa. A transitoriedade é a sua natureza. Os ensaístas do nosso dia preocupam-se muito com a forma, mas pouco com a substância; muito com a moda, mas pouco com a consistência.


Vem isto a propósito de um ensaio que li de Chesterton. A forma como expressa o seu saber, faz-se no sentido etimológico do termo, sapere, i.e., saborear, sentir o gosto e o cheiro. Saber é assim uma forma de comer e de partilhar, de ter alegria pela posse e pela partilha. É um conceito tomista, mas para dizer a verdade, ainda mais alargado, uma vez que é a marca do verdadeiro idealismo, da verdadeira religião: “Todas as grandes escrituras se encontram plenas do convite, não para testar, mas para saborear; não para analisar, mas para comer.”


Por exemplo, a forma como GK desmonta a doutrina socialista construída a partir de uma teologia formal, pós-reforma e pós-liberal, encontra-se expresso num dos seus mais famosos trocadilhos ou paradoxos: “Deus não existe e Marx é o seu profeta.” Ou seja, o socialismo é uma teologia formal.


No entanto, a finalidade deste texto é enfatizar a mestria colocada em The Red Town. Neste ensaio encontra-se expressa, numa linguagem pictórica, uma ideia recorrente em Chesterton: a escola do mundo moderno não se fundamenta num todo significante, mas numa única ideia da moda que segue sozinha fazendo escola, desequilibrada e louca, como se o seu autor, na pressa, desatasse a correr e se esquecesse da cabeça. Este decapitado já não necessita mais da sua cabeça, já produziu a sua ideia. Ele sofreu uma decapitação espiritual, ele perdeu todas as outras ideias. Ele não é um Saint Denis; ele é o pedante que se contempla. Ele não pode dar a sua cabeça, caput, por reconhecer estar enxertado num culto ou cultura, por reconhecer que não chefia. Ele na sua pressa, esqueceu-se de tudo o resto; vive a ilusão da chefia. 




É significativo que o símbolo da revolução fosse a guilhotina: a morte da ideia e da identidade. Só a Igreja e não o Estado defende a singularidade: a ideia e a identidade. Uma única crença, mas uma variedade de expressões, conforme as nações, conforme a individualidade. GK: “Um credo fixo é indispensável para possuir liberdade. Enquanto que os homens são e devem ser diferentes, deve haver alguma comunicação entre eles, se querem retirar alguma alegria da sua variedade. Uma fórmula intelectual é a única coisa que pode construir uma comunicação que não dependa de classe, raça, sangue ou capricho social.”

“Vi também as almas daqueles que tinham sido decapitados por terem dado testemunho de Jesus e por terem acreditado na palavra de Deus…voltaram à vida e reinaram com Cristo…” Ap 20, 4.







The Red Town:


«Quando um homem diz que a democracia não resulta porque a maioria das pessoas é estúpida, eu responderia que é estúpido afirmar que “a maioria” é estúpida. Seria como afirmar: “A maioria das pessoas é alta.” Neste sentido, “alta”, significa mais alto do que a maioria. A maioria da humanidade não pode estar acima da média da humanidade.

Foram as pessoas comuns que atribuíram o nome às flores, que variam, não só de país para país, como de baldio para baldio. De facto, não se poderia ilustrar melhor todo o cristianismo do que chamar a uma pequena flor branca, silvestre, insignificante, “estrela de Belém” (ornithogalum narbonense ou leite de galinha). Pelo contrário, o pedante que se contempla a si próprio é pior que o canalha que só quer obter prazer. Ele é bem a imagem de uma iluminura do século IX, em que Satanás distribui penas de pavão pelos seus seguidores, durante a revolta no céu – a imagem do vil orgulho.





Tomemos então o caso do pedante. Ele pretende encher o mundo com a sua ideia, mas atribui à sua ideia a noção de cor. O vermelho é a coisa mais maravilhosa e terrível no universo físico. Ele é a nota mais feroz, a luz mais alta, o lugar em que as paredes deste nosso mundo são mais finas e de onde algo queima. Brilha incandescente no sangue que nos dá vida e no fogo que nos destrói, nas rosas do nosso romance e no cálice da nossa religião. Ele representa toda a felicidade extática como na fé ou no primeiro amor.


O devasso é aquele que quer disseminar este carmesim de alegria genuína sobre todas as coisas; obter excitação contínua; pintar tudo de vermelho. Ele rebenta mil barris de vinho para tornar todas as ruas encarnadas. Às vezes, na sua loucura, ele massacra homens a animais para mergulhar a sua escova gigantesca no seu sangue. Porque o que marca o carácter sagrado do vermelho na natureza, é ele ser secreto mesmo quando é ubíquo; como o sangue no corpo humano, que é omnipresente mas invisível. O sangue que vive encontra-se escondido; é apenas o sangue a morrer ou morto que se vê.





Pintar toda a cidade de vermelho é excelente apenas enquanto não se faz. Seria esplêndido ver uma cruz de São Paulo tão vermelha como a cruz de São Jorge e litros de tinta vermelha a escorrer da cúpula ou a gotejar da coluna de Nelson em Trafalgar. Mas quando o trabalho estiver terminado, quando se tiver pintado toda a cidade de vermelho, acontece algo de extraordinário: nunca mais se vai conseguir ver o vermelho.


Consigo vislumbrar, numa espécie de visão, o artista bem-sucedido de pé, no meio dessa cidade assustadora, pendente por todo o lado com o escarlate da sua vergonha. É então, quando tudo for vermelho, que ele ansiará por ver uma rosa encarnada numa cerca verde e ansiará em vão; sonhará com uma folha escarlate de um ácer e será incapaz de a imaginar sequer. Dessacralizou a cor divina, e deixou de a vislumbrar, embora se encontre por toda a parte. Observo-o, uma figura de negro, solitária, contra esse inferno vermelho e cálido que ele acendeu, onde os pináculos e as torres se erguem como chamas imóveis: ele encontra-se teso numa espécie de agonia orante.


E é então que afrouxa a misericórdia do Céu, e eu vejo um ou dois flocos de neve que lentamente começam a cair...”







G. K Chesterton, tradução António Campos