domingo, 22 de maio de 2016

O Homem Que Era Shakespeare




Ouvir especialistas falar sobre Shakespeare é como definir chocolate descrevendo o papel
em que vem embrulhado: «Shakespeare provavelmente não era Shakespeare e muito do que escreveu não era dele, ele apenas reuniu e rescreveu lendas que já existiam». Quando se passam vários séculos, um juízo nunca toma completamente em conta as condições da época, incluindo documentais. O mesmo erro poderá ter cometido um conhecido escritor quando afirma numa obra de ficção que Thomas More recolheu a sua Utopia da boca de um anónimo Rafael numa ilha distante. Eu não sei se no século XXIV um crítico escreverá que Manuel Alegre ouviu a “Trova do Vento que Passa” da boca de um guitarrista; mas o que eu sei é que tal seria muito menos chocante (e perigoso) que se o escrevesse hoje. Tal como no ensaio Introdução ao Livro de Job, Chesterton afirmava que o essencial não era se um homem x ou y escrevera algo, mas sim a importância do algo que alguém escrevera. Ideia reafirmada, de forma irónica, mais tarde:

“Eu não pretendo saber muito sobre Shakespeare, para além desse aspecto supérfluo que é o conteúdo das suas obras.” (ILN, 1 de Outubro de 1927). Atacaria a ideia de Mark Twain de que Shakespeare seria Bacon, o pseudo-cientista: “A verdade, receio, é que a loucura possui uma vantagem sobre a sanidade. A sanidade é sempre despreocupada; a loucura sempre cuidadosa. Um louco pode contar todas as grades que cercam Hyde Park; pode conhecer o seu número exacto por ter pensado que elas eram outra coisa. Um homem são não conhece o seu número, talvez nem a sua forma; ele não conhece nada sobre elas, excepto a verdade suprema, sublime, platónica e transcendente, de que elas são grades. (Bacon-Shakespeare, 9 de Março de 1907). Chesterton afirma mesmo que quem elabora teorias sobre Shakespeare sem primeiro conhecer bem a sua obra é que é lunático: “O homem são que é suficientemente equilibrado para ver que Shakespeare escreveu Shakespeare, também é suficientemente equilibrado para não se importar se foi mesmo Shakespeare que escreveu Shakespeare.” 

Por outras palavras, o valor do mensageiro reside na mensagem.

Mas não há dúvida que a mensagem nos diz muito sobre o seu autor e, conhecido o autor, podemos entender mais plenamente a mensagem. Trata-se de uma relação biunívoca.

O segundo canal da TV portuguesa é muito pouco popular, embora seja provavelmente o melhor. Dedicou uma parte importante da sua programação à comemoração dos 400 anos de Shakespeare. Nele passou um programa da BBC, em que num dos seus episódios se abordava precisamente a questão da verdadeira identidade de Shakespeare. Seria Shakespeare, o homem Shaksper de Stratford-upon-Avon ou seria Edward de Vere, o 17º Conde de Oxford, amante da rainha Isabel I?



Shakespeare foi a alma de uma época conturbada. Segundo Harold Bloom, a base da cultura ocidental no drama e o re-inventor do “humano”. Duvido que tenha sido o re-inventor do humano, mas seguramente colocou em palavras, coisas que estão para além das palavras. A “idade do ouro” era na verdade uma idade de genocídio e despotismo, de espionagem e guerra. A Inglaterra deixara de ser católica por decreto real com Henrique VIII, voltara a ser católica com Catarina de Aragão, deixara de ser católica novamente com Isabel I, voltaria a ser católica de novo com Jaime I. Não diria não católica, diria não romana, um catolicismo centrado na figura do rei e não na figura do Papa. A Espanha tinha sido humilhada no seu orgulho - a fúria - por um misto de cegueira, estupidez e negligência, no desastre da Grande Armada. A Inglaterra erguer-se-ia como a grande potência ocidental. Pelo meio, os aldeões viram-se desapossados dos seus baldios, os católicos dos seus haveres e três milhões de irlandeses perderam a vida. Era uma época de terror. A Inglaterra tinha deixado de ser católica romana por decreto, como a Rússia iria deixar de ser ortodoxa por uma revolução…Mas não se muda a alma de um povo num dia.


William Cecil, lorde Burghley, puritano, foi a mão direita da rainha por 40 anos. A um nobre estavam interditos a arte e o teatro, representação e fingimento, recantos do demónio. O Deus puritano é um pouco como o Deus muçulmano: sempre presente, distante e sério, vingativo e impiedoso. Um nobre deveria ocupar-se da guerra e da política ou diplomacia. Não fora o amor da rainha pelo teatro, nenhum teatro teria sido possível. Por ela, a Inglaterra abraçava o Renascimento que surgira na Europa continental 100 anos antes. Ela defendeu o Teatro Popular. Num país com 80% de analfabetos, o teatro era um poderoso meio de comunicação. A relação com a política seria a mesma que hoje tem a comunicação social: a mesma promiscuidade, a mesma manipulação, as mesmas represálias, a mesma dissimulação. Muitos actores e encenadores foram presos e muitas companhias dissolvidas. Tal nunca aconteceu a Shakespeare. Tal como o conde de Oxford que nunca foi punido pelo seu alegado catolicismo.




Outro facto interessante é que Shakespeare encarnava o ethos do seu tempo (aventura, paixão, expansão do pensamento humano), mas ninguém sabia onde vivia o homem que era Shakespeare. O “espírito” da época era um fantasma. Quando em 1616 morre, o silêncio é absoluto, ninguém de Londres vai ao seu funeral em Stratford. Só em 1623, seis anos após a sua morte, foi publicada a primeira colectânea das suas obras, onde aparece o primeiro retrato da sua pessoa. Ben Johnson esperou sete anos para publicar a obra.

William Shaksper existiu, era um plebeu que foi para Londres como roupeiro ou camareiro. A sua vida como plebeu está bem documentada. Era um comerciante mesquinho que açambarcava cereais em tempo de fome, que cobrou a um sacerdote que o visitara o vinho que bebeu, que processou um homem por 14 pence, que frequentemente litigava em tribunal por assuntos mesquinhos, que deserdou a sua mulher. Apesar do teatro onde trabalhou ter ardido, tal como a própria cidade em 1666, os escritores, actores e dramaturgos da época, como Ben Johnson ou John Fletcher, deixaram documentos comprovativos da sua actividade; de Shaksper, nada!

O seu testamento não tem qualidade literária, nenhuma evidência existe de que este plebeu da província tenha recebido qualquer tipo de educação ou que tenha vivido da escrita. Não conservou nenhuma cópia das suas peças. Quando se reformou com 40 e tal anos e regressou a Stratford, nunca mais escreveu nada. Nenhum manuscrito foi alguma vez encontrado escrito pelo punho de Shaksper. Não possuía livros, nem sequer a bíblia. As biografias de Shakespeare são numerosas, mas são “wishful thinking”, desprovidas de factos e documentos e plenas de opinião e suposições dos autores.



Se seguirmos a citação de A Arte da Poesia Inglesa de 1589, “Conheço muitas senhoras neste tribunal que escrevem meritoriamente e suprimem o que escrevem ou pagam a alguém que assuma a autoria”, entendemos o dilema de quem gosta de escrever, mas tem uma posição social a ocultar. Os fidalgos nunca poderiam escrever para o divertimento das classes inferiores (infra dig).

O nome William significa elmo. Ateneia, deusa patrona de Atenas, local onde nasceu o teatro moderno, é também a deusa do disfarce, uma vez que o seu tio, Hades, lhe deu um elmo que a tornava invisível. Shake-a-Spear, significa agitar uma lança. Ateneia era a que agitava a lança.





O domínio de conhecimento que Shakespeare possuia dos clássicos, de falcoaria, de esgrima, de música, dos tribunais, da corte, dos mecanismos da política e do poder, de Itália, sugere alguém com uma cultura geral extraordinária e uma preparação académica exigente e sistemática. Alguém dentro da corte, descontente com a sua situação e cujo nome estaria destinado ao esquecimento. Para entender quem era o homem que assinava como Shake-a-spear, teremos que relacionar Hamlet com a corte, entender Hamlet como uma obra auto-biográfica.

Esta pessoa que se ocultava e que foi votada ao esquecimento era provavelmente Edward de Vere, 17º conde de Oxford.

Esta questão chegou ao Supremo Tribunal em 1987, onde compareceram especialistas em Shakespeare de toda a Commonwealth e dos Estados Unidos. Edward de Vere foi descrito com um carácter muito próximo do de Camões: um aventureiro que arrisca o seu nome na praça pública, com amantes e filhos ilegítimos, vende os seus bens, preso na Torre de Londres. O seu pai patrocinava uma companhia de teatro desde 1492. Em 1561, Isabel I visitou a sua casa, o castelo de Hedingham…para ver uma peça de teatro. De Vere tinha 11 anos. Na sequência do falecimento do pai, no ano seguinte foi chamado à corte como pupilo da rainha e cai sob o domínio do homem mais poderoso do reino, Lorde Burghley, que o casou com a filha e lhe controlou a vida e a fortuna. De Vere estudou direito e um colega de Cambridge, Gabriel Harvey, elogia a sua escrita: “Vede como grandemente tu te excedes nas letras; teus olhos emitem chispas, teu semblante agita uma lança (shakes a spear). A sua proximidade com a rainha (com vinte e tal anos era o primeiro conde da corte e o favorito de uma rainha sem descendentes) e o seu sentido de impunidade levavam-no a desenhar uma coroa por cima do seu nome e sete traços por baixo, sugerindo o título de Eduardo VII, o que, em condições normais, seria o suficiente para lhe provocar a morte.




Em 1575 foi para Itália e ao voltar constrói o primeiro teatro de Londres, o Globe. Nas suas peças, a Commedia dell’Arte e frases coloquiais italianas, marcam presença e testemunham alguém com amor pelo Renascimento italiano. A mulher traiu-o e ele recusa vê-la ou ao filho que afirmava não ser seu. Afasta-se dos Burghley; afasta-se do homem mais poderoso de Inglaterra, William Cecil. Vai morar no exacto local onde nasce o primeiro teatro de Londres. Em 1586, a rainha concede-lhe uma pensão vitalícia de 5 mil libras, algo como 5 milhões de dólares a valores actuais, algo muito fora do comum. Muito presumivelmente De Vere era seu amante. A rainha pouparia o presumível filho de ambos, no final do seu reinado, após a Rebelião Essex, Henry Wriothesley, o conde de Southampton. Em 1593 e 1594, o nome de Shakespeare seria impresso pela primeira vez nas peças “Vénus e Adónis” e “O Rapto de Lucrécia” e a dedicatória seria a…Henry Wriothesley, conde de Southampton. A colectânea de 150 sonetos publicada 8 anos após a revolta Essex também menciona um “belo jovem”, identificado como o conde de Southampton.




Shakespeare conhecia bem a rainha e sabia que ela era mais uma espécie de prostituta do que de virgem. Ela encontra-se representada em todas as suas peças, onde a história da virgindade é exposta como um mito. Ela é a Dark Lady que não deveria deixar sem descendência o sangue Tudor: “Meu verso será vosso monumento que olhos ainda não nascidos verão”.

William Shaksper de Stratford só aparece como accionista do Globe Theatre quando as peças começam a sua exibição. Não se conhece qualquer relação dele com o conde de Southampton.




Hamlet era ele mesmo patrono de actores. Polónio era Lorde Burghley que De Vere mata na peça, como espião e intriguista, não o podendo matar na vida: “aceita de todos os homens a censura mas guarda o teu juízo”, diz Polónio a Hamlet. Polónio era o braço direito do rei. O rei e a rainha eram ao mesmo tempo usurpador, no sentido em que o anglicanismo usurpou o direito religioso, e traidor, no sentido em que Isabel I sempre manteve De Vere na obscuridade da alcova. O Shaksper de Stratford jamais sairia de uma tal peça com vida. De Vere nem sequer foi preso por este motivo. O desastre da relação entre Ofélia e Hamlet espelha a relação disfuncional de De Vere com a filha de Lorde Burghley, Anne Cecil: 

“Ser ou não ser, eis a questão

Há mais nobreza na alma

Em sofrer com os golpes e as flechas da ultrajante sorte,

Ou em pegar num mar de problemas e, ao enfrentá-los

Dar-lhes fim?


Morrer, dormir, nada mais.

E, ao dormir, dizer que pomos fim à angústia

E aos mil golpes naturais que são a herança da carne.

É uma consolação a ser devotamente pretendida.

Morrer, dormir, dormir, talvez sonhar. Eis a dificuldade.



Pois não sabermos, no sono da morte,

Que sonhos nos podem visitar

Quando despirmos este invólucro mortal,

Leva-nos a hesitar.



Eis o motivo para a calamidade de uma vida tão longa.

Pois quem suportaria os golpes e o escárnio do tempo,

A injúria do opressor, as dores do amor não correspondido, a morosidade da lei,

A insolência do poder e o desdém que o mérito paciente recebe dos indignos,

Se pudesse saldar as dívidas com um punhal?



Quem carregaria fardos,

Gemendo e chorando,

Numa existência cansativa,

Se não fosse o temor de algo após a morte?



O território inexplorado de onde nenhum viajante regressa,

Confunde a vontade

E faz-nos suportar os males que temos,

Em vez de ter que suportar outros, que desconhecemos.



Assim, a consciência faz de nós cobardes

E o rubor natural da determinação

É impedido pelo pensamento.



E tarefas requerendo grande vigor e determinação

Desviam-se do seu curso

E até o nome de acção perdem.”



Afirma um agonizante Hamlet:


“Por Deus, Horácio, que ferido nome,
Sendo as coisas assim ignoradas,
Viverá depois de mim?
Se algum dia me albergaste em teu coração
Ausenta-te por uns tempos da felicidade
E neste severo mundo
Respira com dor
Para contar a minha história.”




António Campos



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